Uma nova Escola Lumiar

Foi inaugurada ontem, 2 de Fevereiro de 2009, no bairro “rururbano” do Lageado, em Santo Antonio do Pinhal, SP, a terceira Escola Lumiar. Com uma novidade: esta é uma Escola Bilíngüe: Português-Inglês.

A Escola Lumiar Internacional do Lageado começa pequena – mas tem tudo para crescer (dentro dos parâmetros da região). É uma escola particular, mas não lucrativa. Será uma grande contribuição para a região do Vale do Paraíba e um grande desafio para o Instituto Lumiar, que tenho o privilégio de presidir, que é responsável pela orientação pedagógica da escola.

A Escola surge de uma parceria entre Ricardo e Fernanda Semler, da Fundação Ralston Semler, e Flávio e Gláucia Zuffellato, moradores da região há muito tempo. A Coordenação Pedagógica geral é de Paloma Machado, do Instituto Lumiar. Érika Júlio é a Diretora da Escola, e Bruna Ortiz é a principal educadora bilíngüe.

As instalações da escola estão em duas casas que foram totalmente renovadas e unidas, e que ficam num terreno amplo, no centrinho do Lageado, com um laguinho, uma piscina e um playground, além de um amplo espaço coberto e descoberto. A escola fica ao lado do Posto de Saúde do Lageado e da igreja local, e do outro lado da Escola Lumiar Municipal do Lageado, que é mantida em convênio com a Prefeitura de Santo Antonio do Pinhal. As duas escolas são separadas pelo campo de futebol municipal que existe no bairro, que, por acordo com a Prefeitura, será usado para atividades recreativas e de educação física.

Eis algumas fotos da escola e do dia da inauguração.

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No Lageado, em Santo Antonio do Pinhal, 2 de Fevereiro de 2009

Educação e Escola

[Este texto foi escrito em parte com base numa conversa com Ricardo Semler em 23 de Julho de 2008]

A escola convencional, que até hoje persiste, é uma instituição totalmente alicerçada no passado.

O fato de que ela dá férias prolongadas aos seus alunos no verão é reflexo de uma era pré-industrial, quando a agricultura dominava a vida. Na época da colheita, os alunos precisavam ajudar os pais no campo – daí, as férias mais longas nesse período.

A duração da aula, fixada em cerca de 50 minutos, se deve ao fato de que, antigamente, se considerava que o “attention span” das crianças não passava de mais ou menos isso. Hoje, outros estudos mostram que a televisão, as empresas de marketing, etc., calculam o “attention span” dos adultos em cerca de apenas oito minutos. Por isso os segmentos das novelas e dos noticiários são quebrados em vários períodos de mais ou menos oito minutos – e os vídeos institucionais raramente ultrapassam essa duração. (E, no entanto, uma criança jogando um videogame novo, desses em que você pode progredir para estágios cada vez mais avançados, fica até três horas jogando, sem perder a concentração…)

O tamanho da sala de aula tradicional – para no máximo 40 alunos – representa o espaço que podia ser alcançado pela voz humana desassistida da tecnologia.

Os professores, todo especialistas, refletem um período em que se acreditava que a verdade estava na especialização e que era preferível saber quase tudo sobre quase nada do que saber um pouco sobre um monte de coisas.

A retenção média pelos alunos daquilo que o professor diz numa aula normal de uma escola convencional é 6%. Isto significa que na escola há uma perda de 94% do que o professor diz.

Nenhuma instituição com uma taxa de perda ou rejeição de 94% sobrevive – exceto a escola. Manter esse sistema hoje é manter o mais incompetente sistema que jamais se criou. Ele nega tudo o que sabemos sobre como crianças, adolescentes e jovens aprendem – na verdade, sobre como qualquer um aprende.

A aprendizagem é fruto da curiosidade, e a curiosidade, do interesse. Basta assistir ao lindo filme Céu de Outubro (October Sky). Quando temos interesse por alguma coisa, e temos a liberdade de explorá-la, não há problema de falta de motivação, de perda de atenção… Mas explorar é algo ativo, diferente de simplesmente prestar atenção, ver, ouvir ou ler… Se a curiosidade e o interesse da criança tiverem a sorte de topar com a paixão pelo tema e o know-how necessário para explorá-lo por um adulto, será um “match perfeito”. Nada impedirá a aprendizagem da criança nesse caso.

Estudos têm mostrado que, quando nós, adultos, olhamos para trás para identificar os mestres que fizeram uma diferença em nossa vida, encontramos no máximo uns três, talvez uns quatro – cinco ou seis se tivermos muita sorte. E esses não são lembrados pelo conteúdo que nos ensinaram. São lembrados, primeiro, porque tinham paixão por alguma coisa. São lembrados, também, pelo fato de que essa paixão os levara a se dedicar boa parte de sua vida a essa coisa, a explorá-la de todos os ângulos. A paixão, a sede de conhecer mais sobre o objeto da paixão, e a competência decorrente tinham o poder de contagiar as jovens mentes que tinham contato com eles.

Eis o que diz sobre esse assunto, por exemplo, John Steinbeck, escritor americano, Prêmio Nobel de Literatura:

“O bom professor, como o grande artista, é raro… Encontramos muito poucos deles na vida. Se você tem sorte, ao olhar para trás, descobre uns dois ou três deles. Eles não lhe passaram informações. Eles não lhe disseram o que fazer. Eles lhe abriram a porta de um novo mundo e o ajudaram a entrar nele, acreditando que aprender é sempre uma aventura fascinante, porque é assim que a gente constrói a própria vida.”

Crianças curiosas, interessadas, motivadas não precisam que ninguém lhes ensine nada. Aprendem por si só, quando têm curiosidade, interesse, motivação – e, quando são contagiadas pela paixão, pelo entusiasmo, pelo conhecimento, pela competência de alguém. Educar não é encher um balde. Educar é acender uma luz: uma vela que, por sua vez, vai, um dia, acender uma outra… (A imagem é de William Butler Yeats).

E crianças não precisam aprender a aprender. Elas vêm de fábrica com essa capacidade. Aprendem a reconhecer as faces da mãe, do pai, dos familiares sem que ninguém lhes ensine nada; aprendem a entender a fala humana e, no devido tempo, a falar, sem que ninguém lhes ensine nada; aprendem a andar, a correr, a pular, sem que ninguém lhes ensine nada. Basta querer – e querer elas cedo ou tarde querem, se a escola tradicional não matar a sua curiosidade.

A Lumiar é uma escola criada dentro dessa visão.

Em Salto, 24 de Julho de 2008

Educação na tradição liberal

Na tradição liberal a educação deve se alicerçar nos seguintes princípios:

  • Foco no indivíduo (não na sociedade)
  • Ênfase no desenvolvimento humano (não na transmissão de legados culturais)
  • Orientação para o futuro (não para o passado)
  • Existência de ricas e reais alternativas (não "tamanho único")
  • Estrutura flexível (não rígida)
  • Liberdade de escolha (não roteiros pré-determinados)

Seu objetivo deve ser a formação de um ser humano:

  • Competente (não erudito)
  • Autônomo (não dependente)
  • Responsável (não obediente)

Sua metodologia deve ser:

  • Centrada na aprendizagem ativa
  • Construída sobre os interesses do aprendente
  • Voltada para a solução de problemas
  • Organizada em projetos

A educação oferecida pela Lumiar tem essas características.

Em Campinas, 20 de Julho de 2008

O professor é dividido em dois…

[No dia 12/10/2007 publiquei aqui este artigo em Inglês no blog em Inglês. Agora ofereço a sua tradução]

A escola convencional exige demais — e, paradoxalmente, de outro ângulo, muito pouco — de seus professores.

Pode-se presumir que o ofício de professor (qualquer que fosse o nome dado aos seus ocupantes então) surgiu porque havia necessidade de alguém que ajudasse as crianças a aprender e, assim, a se desenvolver. Ponto final.

Por milhares e milhares de anos, as crianças aprendiam tudo o que precisavam aprender em casa ou dentro dos limites do círculo familiar. O professor, portanto, era a família: a mãe, o pai, a avó, a avô, a tia, o tio, os irmãos mais velhos, os primos mais experientes… No contexto relativamente simplificado em que isso se dava, os membros da família tinham, em seu conjunto, tudo o que se exigia para ajudar os mais jovens a aprender e a se desenvolver. Em seu conjunto, eles dominavam o conteúdo de tudo o que precisava ou devia ser aprendido:

  • Em primeiro lugar, coisas práticas:  a linguagem (por muito tempo apenas a linguagem falada; depois, e mesmo assim nem em todas as famílias, a leitura e a escrita), os rudimentos da aritmética, e as habilidades práticas exigidas pelo negócio da família: os negócios externos (em geral: inicialmente, caçar, pescar, colher os frutos que cresciam naturalmente nas árvores e arbustos; mais tarde, cultivar a terra, cuidar dos animais, etc.), em regra reservados para os homens, e o trabalho doméstico: cuidar da tenda ou da casa, cozinhar, lavar roupas, tecer, costurar, bordar, tricotar, etc.), em regra reservado para as mulheres;
  • Em segundo lugar, ainda coisas práticas, mas agora colocadas num “plano mais elevado”: a “arte de viver”, ou os princípios e as regras da moralidade, da vida espiritual e (talvez num plano não tão alto) da estética.

O primeiro componente era mais ou menos pressuposto como algo que nem merecia discussão, mas o segundo era considerado realmente importante, visto que envolvia preparar as crianças para viver suas vidas não só nesta vida, mas também na futura… (como diz, até hoje, o moto da educação adventista).

A “arte de viver” geralmente incluía:

  1. Educação moral: ajudar as crianças a entender a diferença entre o moralmente certo e o moralmente errado [conceito], entender (ou simplesmente aceitar) aquilo que faz com que uma determinada ação seja moralmente certa ou moralmente errada [critério], classificar diferentes ações concretas como moralmente certas, ou moralmente erradas, ou moralmente indiferentes [segundo o critério], e, mais importante, fazer o que é moralmente certo e deixar de fazer o que é moralmente errado;
  2. Educação spiritual: [especialmente em círculos cristãos] ajudar as crianças a entender que temos um corpo mas somos uma alma, que nossa alma que sobrevive à morte do seu corpo, que como nos comportamos aqui na vida aqui na Terra vai nos trazer recompensas ou punições na vida futura, e que, portanto, é importante ler (ou ouvir) as escrituras, orar solicitando a orientação divina, ir à igreja, etc.
  3. Educação estética: [dirigida mais para as meninas] ajudar as crianças a desenvolver alguns dos mais finos hábitos e a cultivar as artes, aprendendo a desenhar, pintar, cantar, tocar um instrumento, e, em geral, apreciar o que é belo e evitar o que é feio.

À medida que a vida foi se tornando mais complexa, porém, a família teve de recorrer a agentes externos, especializados, para apoiá-la na tarefa de ajudar suas crianças a aprender tudo o que era considerado digno de aprender. Foi nesse contexto que surgiu a função do professor – e foi nesse contexto que, muito mais tarde, a escola moderna, com sua “congregação de professores” (expressão até hoje utilizada), foi inventada.

Muitas coisas tornaram esse desenvolvimento necessário – mas algumas delas são especialmente importantes, e tiveram lugar por volta do fim do século quinze e durante os séculos dezesseis e dezessete: a invenção da imprensa de tipo móvel, a explosão de textos escritos que resultou dessa invenção (e que marca o início da literatura no vernáculo da maior parte das línguas modernas), a descoberta de partes até então desconhecidas do mundo, a Reforma Protestante (com sua ênfase na tese de que cada crente precisa ler as Escrituras por si próprio e interpretá-las “sob a iluminação do Espírito Santo”, o aparecimento da ciência experimental moderna… Os reformadores protestantes tiveram um papel importante no processo, porque insistiram que cada um devia aprender a ler para poder ler e interpretar as Escrituras, e, assim, não ser enganado pelos padres católicos (pois o preço de não aprender a ler poderia ser a danação eterna no inferno…). O resultado disso foi que escolas começaram a aparecer em toda cidade ao lado das igrejas protestantes.

Uma conseqüência importante dessa ênfase na educação foi que o mister de ajudar as crianças a aprender se tornou mais complexo e uma gradual “divisão de trabalho” (com sua conseqüente criação de funções especializadas) começou a ocorrer. A família, por um tempo, reteve as funções práticas de preparar os meninos para os negócios externos da família e as meninas para os negócios domésticos relacionados ao cuidado da casa e, oportunamente, dos filhos. A educação moral e spiritual foi, em larga medida, compartilhada pela família e pela igreja. A educação estética (“a educação da sensibilidade”) perdeu um pouco de sua importância. E a escola assumiu uma área que não existia antes, mas que estava fadada a crescer e a assumir cada vais mais importante: a educação intelectual.

Com o aparecimento de várias linguagens modernas e sua correlata literatura, com a descoberta de novos mundos, com a criação de várias denominações protestantes (competindo não só com a Igreja Católica, mas também umas com as outras), com o surgimento da ciência moderna, que gradualmente evoluiu da astronomia e da física para a química e a biologia, e o posterior surgimento das ciências humanas (história, geografia, psicologia, sociologia, antropologia, ciência política, etc.), o cenário intelectual – o mundo das idéias – cresceu em complexidade e importância. De repente a família parecia totalmente inadequada para a tarefa de preparar as crianças para aprender coisas tão complexas e variadas. E, curiosamente, e de certo modo paradoxalmente, esse novo mundo das idéias estimulou o interesse no velho mundo das idéias dos Gregos e Romanos…

Nem mesmo se podia esperar que um professor individual, geralmente empregado por famílias de mais posses, pudesse dominar tudo aquilo que se esperava que as crianças, especialmente as das classes mais elevadas, viessem a aprender… As famílias mais ricas começaram a contratar vários professores especializados. A classe media emergente (e, mais tarde, também os ricos) tiveram de recorrer à congregação de professores fornecida pelas escolas… (Os pobres geralmente ficavam de fora – até bem recentemente).

E assim chegamos à escola atual, convencional… Essa escola é, desde o início, e quase que por definição, um ambiente de aprendizagem especializado: ela tenta lidar apenas com a educação intelectual e, mesmo assim, apenas com um segmento dela. A educação moral, espiritual e estético ficam normalmente fora de seu escopo. E a chamada educação profissional e vocacional foi atribuída a instituições especializadas e nunca foi considerada muito importante. O saber fazer, nessa escola, perde lugar para o saber puro e simples, desvinculado da prática.

A escola convencional de hoje (e a sociedade, em geral) quer que os professores sejam várias coisas ao mesmo tempo…

Acima de tudo, ela quer que os professores sejam especialistas em conteúdo, isto é, quer que eles conheçam bem uma das matérias (disciplinas acadêmicas) nas quais o currículo (aquilo que deve ser aprendido na escola) veio a ser dividido.

Com a explosão da informação que caracteriza o nosso tempo, expectativas acerca da área dos professores foram sendo ajustadas (i.e., estreitadas). Hoje não se considera mais razoável que um professor seja um especialista em toda a biologia, ou em toda a física, ou mesmo em toda a história: os professores precisam escolher sub-especialidades: História do Brasil, por exemplo, no caso de um professor de história… ou até mais (isto é, menos) do que isso: História do Brasil Republicano (ou, pior, História do Brasil Após a Segunda Guerra…)

Mas as expectativas foram ainda mais estreitadas à medida que foram sendo “focadas”… Além da escolha de especialidades dentro das especialidades, os professores começaram a se especializar no conteúdo específico que deveria ser ensinado às classes sob sua responsabilidade: “Sou professor de matemática no ensino médio”… “Sou professor de língua portuguesa na oitava série”…

Mas o nível de especialização tem uma conseqüência ainda mais problemática.

Cada uma das diferentes áreas de especialização pode ser dividida em duas partes: uma que contém o que poderia ser chamado de o “conteúdo legado”, produzido pelos especialistas do passado (mesmo recente), e outra que contém o “método de investigação e reflexão” que, quando aplicado, pode produzir conteúdo semelhante…

Essa distinção é muito importante.

Tentarei mostrar por que usando como exemplo minha própria área de especialização, a filosofia. É provável que os seres humanos tenham estado a filosofar por muito tempo. Mas a filosofia, como uma forma de investigação sistemática sobre questões como o que existe (ontologia), de onde viemos e para onde vamos (metafísica), qual é o curso correto de ação que devemos assumir (ética), qual é a forma correta de organizar a vida em sociedade (filosofia política), por que consideramos algumas coisas lindas e atraentes e outras feias e repugnantes (estética), e como é que sabemos tudo aquilo que presumimos saber (lógica e epistemologia) – essa forma de investigação teve seu início entre os gregos durante os cinco séculos que precederam a era cristã. E se espalhou, para todo canto e muito rapidamente. Mais de dois mil anos depois, temos uma quantidade incrível de registros históricos daquilo que pensaram os filósofos passados e contemporâneos. Esse é o que chamo de o “conteúdo legado” dessa área de especialização.

Ajudar uma criança a aprender a filosofar pode, nesse contexto, ser interpretado de duas maneiras diferentes:

  • Ajudá-la a assimilar as idéias mais importantes (segundo algum critério) daquilo que outros filósofos pensaram e escreveram;
  • Ajudá-la a desenvolver as habilidades e competências necessárias para pensar e escrever de maneira semelhante (ou seja, necessárias para que eles mesmos filosofem).

A maior parte dos professores de filosofia opta por fazer apenas a primeira dessas duas coisas – e muitas vezes não sabe filosofar nem mesmo para consumo próprio. Não tenho dúvida nenhuma, porém, de que a segunda dessas coisas é a mais importante para a filosofia (a primeira, na verdade, não é filosofia: é história, ainda que da filosofia)… Na realidade, o pensamento escrito de outros filósofos só se torna interessante quando a gente começa a dominar a arte de filosofar… Para quem não tem esse domínio, o pensamento filosófico de terceiros é terrivelmente chato.

O que acabei de dizer sobre a filosofia pode ser dito, com a mesma propriedade, sobre qualquer outra das disciplinas acadêmicas. A maior parte dos professores nas escolas convencionais de hoje não ajuda as crianças a aprender como filosofar, como pensar como um cientista, como produzir obras de arte. Esses professores estão apenas envolvidos em transmitir para os alunos o que filósofos, cientistas e artistas pensaram e fizeram ao longo da história. Seu negócio é “transmitir conteúdos” – uma expressão horrível que, infelizmente, reflete bastante bem o que a maior parte dos professores faz: sua área de especialização é, para eles, apenas um monte de conteúdo – conteúdo esse que consiste daquilo que os outros pensaram ou fizeram, e que, agora, precisa ser transferido para os alunos que, quase por definição, não têm familiaridade com ele.

Posto que o conteúdo de uma área de especialização, hoje, cresce muito rapidamente, os professores são incapazes de se manter atualizados até mesmo sobre o que se produz em suas estreitas especialidades, e a tendência é que se especializem cada vez mais, até chegar o ponto de saberem quase tudo sobre virtualmente nada. E é isso que transmitem para seus alunos.

A bem da clareza, aqui está o que esses professores não fazem – nem suas escolas exigem que o façam:

  1. Ajudar seus alunos a dominar os métodos de investigação de suas disciplinas especializadas;
  2. Ajudar seus alunos a entender o contexto mais amplo em que as disciplinas foram definidas e operam;
  3. Ajudar seus alunos a entender que as questões mais interessantes em geral transcendem os limites das disciplinas tradicionais e mesmo de mega-áreas como, por exemplo, filosofia, ciência, ou arte;
  4. Ajudar seus alunos a lidar com as competências e habilidades práticas exigidas pelas diversas profissões intelectuais;
  5. Ajudar seus alunos a lidar inteligente e honestamente com questões morais, espirituais e estéticas que vão inevitavelmente confrontá-los.

Isto posto, fica claro por que eu disse, no início, que a escola convencional, e a sociedade que a apóia, exige, ao mesmo tempo, demais e muito pouco de seus professores.

A Lumiar tenta enfrentar esse problema de diversas maneiras.

Talvez a maneira mais criativa e interessante tem sido dividir o professor em duas figuras pedagógicas: o tutor/mentor e o instrutor/mestre.

O tutor/mentor é funcionário de tempo integral da escola. Cada um deles é responsável por cerca de 15 a 20 alunos. A responsabilidade envolve o desenvolvimento pessoal do aluno em todos os aspectos relevantes: físico, social, emocional, moral, espiritual e, naturalmente, intelectual. O tutor/mentor deve conhecer bem as crianças por cujo desenvolvimento ele é responsável. Ele deve descobrir o que as crianças já sabem quando entram na escola, isto é, quais são os talentos, inclinações, interesses, esperanças e expectativas que trazem consigo para a escola (tanto quanto se pode descobrir essas coisas em relação a crianças pequenas). Com a ajuda dos pais delas, ele deve ajudar as crianças a escolher e contratar os projetos de aprendizagem em que vão se envolver. Ele deve supervisionar as crianças enquanto elas não estão envolvidas nos seus projetos de aprendizagem (pois neste caso elas ficam sob a supervisão do instrutor/mestre). Ele deve periodicamente avaliar o seu aprendizado e o seu desenvolvimento (com base em suas observações e com a ajuda de relatórios elaborados pelos instrutores/mestres). E, a menos que problemas surjam, ele não é substituído por outro tutor/mentor à medida que a criança vai ficando mais velha: ele é uma referência constante para elas.

O instrutor/mestre é, de certo modo, o especialista em conteúdo a quem a responsabilidade pelo desenvolvimento das competências e habilidades específicas é – para usar um termo quase que abusivo – terceirizado. Ele não é funcionário de tempo integral da escola: é contratado para oferecer – planejar, desenvolver, implementar, executar — projetos específicos de aprendizagem para as crianças – e avaliar o seu desempenho neles (avaliando não só se realizaram as atividades previstas mas, também, se desenvolveram, ao realizar essas atividades, as competências e habilidades previstas).

Há três características importantes que são buscadas nos instrutores/mestres:

  1. Que dominem com competência um conteúdo específico – por isso são chamados de mestres;
  2. Que sejam capazes de olhar ao conteúdo que dominam do ponto de vista das competências e habilidades exigidas para produzi-lo, e não do ponto de vista de sua mera transmissão para os alunos – é por isso que a Lumiar reluta em chamá-los simplesmente de professores;
  3. Que tenham um genuíno interesse na área e uma paixão visível pelo que vão fazer, a saber, ajudar as crianças no seu desenvolvimento.

Se essas três características estiverem presentes – domínio, foco nos métodos de investigação, e motivação – os instrutores/mestres não devem ter problemas para conseguir que os alunos voluntariamente se disponham a participar de seus projetos: os alunos não precisam ser seduzidos, muito menos compelidos, a participar.

Se os tutores/mentores fornecem oferecem constância e continuidade, os instrutores/mestres oferecem mudança e diversidade.

A administração da escola é responsável por garantir que todas as áreas essenciais da Matriz de Competências que serve de currículo estejam cobertas por projetos de aprendizagem oferecidos, liderados e coordenados pelos instrutores/mestres. Estes são responsáveis por garantir que os alunos envolvidos em seus projetos não só aprendam o conteúdo dos próprios projetos, mas, também, que desenvolvam as competências e habilidades definidas pela Matriz de Competências. E os tutores/mentores são responsáveis por garantir que aquilo que os alunos aprendem nos diversos projetos contribui para seu desenvolvimento coerente como pessoas – não só como os indivíduos únicos que são, mas também para sua existência social como cidadãos e para sua preparação para serem, oportunamente, os profissionais que o século XXI exige.

O professor convencional foi dividido em dois na Lumiar – e, no caso dos instrutores/mestres, seu foco de atuação, dentro de sua área de especialização, foi retirado da transmissão do “conteúdo legado” nela existente para os métodos de investigação.

Em Campinas, 12 de Outubro de 2007 — traduzido para o Português pelo autor, em 3 de Março de 2008

Breve Entrevista

Abaixo, minhas respostas a cinco perguntas sobre a Lumiar que me foram formuladas.

  1. O que é Mosaico?
  2. Qual a concepção de currículo da Escola Lumiar?
  3. Qual a concepção de metodologia da Escola Lumiar?
  4. Qual a concepção de tecnologia da Escola Lumiar?
  5. O que é inovador no projeto Lumiar?

1. Dentro de uma escola, o currículo define o que o aluno deve e (além do que deve) pode aprender, a metodologia, como se espera que ele aprenda, e a avaliação, como se pretende averiguar e aferir se o que ele deveria aprender foi ou está sendo aprendido. O Mosaico é uma ferramenta que permite e ajuda integrar essas facetas essenciais do trabalho pedagógico: currículo, metodologia e avaliação. O Mosaico não é o currículo, nem a metodologia, nem o processo de avaliação da Lumiar, considerados individualmente. É a ferramenta que os integra. Seu papel como ferramenta ficará ainda mais evidente com a conclusão do Mosaico Digital.

2. O currículo, como foi dito na resposta anterior, define o que o aluno deve e pode aprender na escola. A concepção de currículo da Lumiar se diferencia claramente das concepções tradicionais – em mais de um aspecto.

A) Enfatizando o que o aluno deve aprender, o currículo representa um posicionamento e um compromisso da escola. O posicionamento está no fato de que a escola assume os riscos inerentes em dizer publicamente o que, em seu entender, é essencial que o aluno aprenda na escola, hic et nunc: no nosso espaço (sabendo que o espaço, hoje, é cada vez mais globalizado) e nosso tempo (sabendo que o tempo, do ponto de vista do aluno, é sempre o futuro). O compromisso está no fato de que ela se propõe a ajudar o aluno a aprender esse essencial.

B) Enfatizando o que o aluno pode aprender, a escola aponta para o fato de que, além do que é essencial e inegociável aprender, há outros aprenderes que só se tornam importantes no contexto de interesses, talentos e aptidões muito específicos e diferenciados – ou seja, no contexto do projeto de vida de cada aluno. Esses aprenderes são complementares e eletivos – mas ainda assim a escola os reconhece como parte importante do currículo, e que o torna, não “one size fits all”, mas algo personalizado e que respeita as diferenças individuais.

C) Tanto num como noutro caso, o que se deve e pode aprender são saber-fazeres, mais do que meros saberes – competências e habilidades, mais do que conhecimentos e informações. É verdade que, para se desenvolver competências e habilidades, é necessário possuir, ou adquirir, conhecimentos e informações (e, mais ainda, valores e atitudes). Mas o currículo será definido em termos de competências e habilidades, para que o foco da aprendizagem do aluno, em qualquer momento, seja sempre um saber-fazer. Um excelente nome para esse enfoque é a transversalização dos conteúdos e das informações de cunho disciplinar: o currículo consiste de conjuntos de competências e habilidades – mas para desenvolvê-los, é necessário possuir ou buscar conhecimentos e informações disciplinares. Esse enfoque, mais do que multi- ou inter-disciplinar, é transdisciplinar: transcende o paradigma disciplinar.

D) Num parêntese, é importante registrar que, a essa visão do currículo subjaz uma visão do ser humano, como um ser que tem uma essência (donde a parte “essencial” do currículo), mas cuja essência inclui a liberdade (donde a parte “complementar” e “eletiva” do currículo). O ser humano tem uma “programação”, mas essa programação é aberta e incompleta (deixando a porta aberta para a liberdade). Por isso, embora sejamos todos seres humanos, cada um é humano da sua própria maneira… É por isso que o ser humano, embora já nasça humano, é incompetente, dependente e irresponsável ao nascer – nasce sem projeto. É pela educação, centrada na aprendizagem, que ele pode tornar-se competente, autônomo e responsável na definição e na realização de um projeto de vida.

3. A metodologia especifica como se espera que o aluno aprenda dentro da escola. A metodologia da Lumiar é ativa, focada na solução de problemas e baseada em projetos.

A) Ao denominar a aprendizagem como ativa, deixa-se claro que a melhor maneira de aprender é agindo, fazendo alguma coisa. Aprender é algo que cada um constrói, dentro de si, não algo que se absorve e assimila passivamente (como um paciente absorve, às vezes contra a vontade, um remédio).

B) Ao caracterizar a aprendizagem como focada na solução de problemas, reconhece-se que a raça humana evoluiu enfrentando e resolvendo problemas. Alguns desses problemas foram puramente intelectuais: sua solução veio na forma de teorias – foi assim que a filosofia e a ciência pura (logos) evoluíram. Outros problemas foram eminentemente práticos (embora nunca isentos de componentes intelectuais): sua solução veio na forma de métodos, procedimentos, notações, ou então, ferramentas, instrumentos, equipamentos – foi assim que as técnicas (techné) evoluíram.

C) Um projeto de aprendizagem, nesse contexto, é uma tentativa deliberada e sistemática de resolver um problema – teórico ou prático. Para uma criança pequena, aprender a falar ou a andar são projetos de aprendizagem de grandes proporções e alcance, e elas os executam com maestria – não sozinhas, mas com apoio, ajuda e orientação dos outros. Ninguém, entretanto, precisa ensiná-las a falar ou a andar. Elas vêem os maiores falando e andando, interessam-se por fazer o mesmo, e resolvem aprender a falar e a andar – e o fazem tentando, errando, recebendo apoio, ajuda e orientação dos outros, até que o conseguem.

4. O ser humano tem sido aptamente descrito como não só homo sapiens – um ser que aprende – mas também como homo faber – um ser que faz. Na verdade, ele aprende fazendo. Tecnologia é tudo aquilo, tangível ou intangível, hard ou soft, que o ser humano inventa para facilitar a sua vida ou torná-la mais prazerosa. As tecnologias mais reconhecidas são as tangíveis: ferramentas, instrumentos, equipamentos. Mas há tecnologia intangível também: métodos, procedimentos, notações, a própria linguagem. A tecnologia digital de hoje é apenas a ponta do iceberg que começou há muito tempo. Sua finalidade, como se disse, é facilitar a nossa vida ou torná-la mais prazerosa. (A Microsoft, a mais famosa empresa de tecnologia hoje, e parceira da Lumiar, produz tecnologia muito mais soft do que hard, como seu nome indica.)

No contexto escolar, em que o objetivo maior é a aprendizagem do aluno, a finalidade da tecnologia é ajudar o aluno a aprender mais e melhor – e, possivelmente, de forma mais prazerosa.

O aprender se dá pela interação pessoal e pelo manuseio (acesso, organização, análise, aplicação, compartilhamento) da informação. Por isso a tecnologia mais relevante para a aprendizagem é, e sempre foi, a tecnologia de comunicação e informação.

Registre-se que o aprender, em si, mesmo sem tecnologia, é eminentemente prazeroso, mesmo quando é difícil e exige muita concentração e muito esforço. A tecnologia, que é ferramenta (tool) que torna a vida mais fácil, mas também é brinquedo (toy) que torna a vida mais prazerosa, sempre esteve presente na educação na forma de linguagem, de escrita, de instrumentos de comunicação oral e de escrita, de métodos e equipamentos de representação e retenção da informação… A tecnologia digital de hoje é apenas a mais recente e sofisticada de uma série de desenvolvimentos que sempre estiveram presentes na educação.

5. O que é inovador no projeto da Lumiar? Seria mais fácil procurar o que não é… Tudo é inovador – se contrastado com o tipo predominante de escola que temos hoje. Isso não quer dizer que cada componente do projeto da Lumiar seja inédito. Não, os vários componentes do projeto Lumiar têm raízes muito antigas em alguns casos. Mas a forma em que se integram e formam um todo, essa, sim, é inédita – e explica o interesse que a escola tem gerado.

Campinas, em 27 de Fevereiro de 2008

Lumiar: Declaração de princípios

A Escola Lumiar, criada em 2002, com funcionamento a partir de 2003, é mantida pelo Instituto Lumiar, entidade que possui atribuições de pesquisa e desenvolvimento que vão além da escola em si, em parte com recursos fornecidos pela Fundação SEMCO, criada por Ricardo Semler, e em parte com recursos oriundos do pagamento de mensalidades por parte de seus alunos.

A Lumiar foi criada para ser uma escola experimental e inovadora. Quem a criou resolveu levar extremamente a sério as aberturas da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e os princípios arrojados incorporados aos Parâmetros Curriculares Nacionais, entre os quais os seguintes:

· Uma Visão da Educação que vê a educação como processo contínuo e permanente de desenvolvimento do ser humano que abrange não só os aspectos cognitivos desse desenvolvimento, mas também os seus aspectos emocionais e sociais, e que acontece através das múltiplas interações do indivíduo com seu ambiente humano e natural, fora e dentro da escola;

· Uma Visão da Escola que a vê como ambiente privilegiado de aprendizagem, organizado para propiciar aos alunos oportunidades de aprendizagem ricas, flexíveis e envolventes, que encoraje a liberdade de aprender, incentive a autonomia do aluno e, ao mesmo tempo, exija dele responsabilidade pelas suas escolhas, decisões e ações, dentro de um clima que favoreça a individualidade e, ao mesmo tempo, a cooperação; a diversidade e, ao mesmo tempo, a igualdade de direitos e a existência de atributos comuns; a tolerância e o respeito mútuo;

· Um Currículo focado no desenvolvimento de competências pelos alunos e não na transmissão de conteúdos disciplinares pelos professores e que se caracteriza, portanto, como uma Matriz de Competências, organizada ao redor dos Quatro Pilares da Educação propostos pela UNESCO, em vez de uma grade de disciplinas;

· Uma Metodologia centrada na participação em Projetos de Aprendizagem cuidadosamente definidos para facilitar aos envolvidos o desenvolvimento de competências específicas e oferecidos em quantidades e modalidades suficientes para propiciar aos alunos real liberdade de escolha, participação essa que substitui as aulas tradicionais;

· Um conjunto de Profissionais Pedagógicos diferenciados em dois grupos:

  • de um lado, Educadores (Mentores, Orientadores, Conselheiros) dos alunos, que são contratados pela escola em tempo integral (mínimo de seis horas) e que têm a função de acompanhar e supervisionar, ano a ano, um mesmo grupo de alunos em todas as suas atividades, inclusive nas presumidas como apenas recreativas, interagir com eles e com seus pais com o objetivo de incorporar informações extra-escolares ao Portfólio de Aprendizagem dos alunos e manter os pais informados sobre o desempenho do aluno na escola, assistir os alunos, juntamente com os pais, na escolha dos projetos de que irão participar, e avaliá-los periodicamente (pelo menos a cada dois meses e ao final do ano);
  • de outro lado, Mestres com competência e alto nível de interesse em áreas que possam servir para o desenvolvimento de competências por parte dos alunos, que são contratados pela escola por períodos limitados (dois a quatro meses em regra) e que têm a função de planejar e coordenar projetos de aprendizagem e avaliar o desenvolvimento das competências dos alunos que participam desses projetos;

· Um uso criativo e inovador da Tecnologia, que a põe a funcionar como ferramenta da aprendizagem individualizada e personalizada do aluno e não como uma ferramenta de apoio ao ensino do professor no gerenciamento da classe e na transmissão de conteúdos disciplinares;

· Uma Forma de Gestão democrática e participativa que encontra sua melhor expressão na Roda, que é uma assembléia geral da comunidade escolar que se reúne todas as semanas para discutir problemas que lhe são trazidos por qualquer membro da comunidade escolar e que vão desde questões disciplinares até questões relacionadas à natureza da comida servida ou da limpeza dos banheiros.

Numa visão como esta, a Lumiar, em vez de focar no conhecimento disciplinar e transversalizar o desenvolvimento de competências, faz o contrário: foca no desenvolvimento de competências e transversaliza a busca de conhecimento disciplinar, que entra na formação do aluno à medida que se mostra necessário ou útil para a realização dos projetos de aprendizagem.

Em Campinas, 23 de Novembro de 2007

O Mosaico

1. Introdução

O que chama de Mosaico no contexto da Lumiar é, em última instância, um complexo Sistema de Informações. Seu objetivo básico é permitir a Gestão Pedagógica da Escola Lumiar. Não é preciso “forçar a barra” para caracterizar o Mosaico como um Sistema de Gestão da Aprendizagem – SGA (Learning Management System – LMS) voltado para o ambiente escolar – mas para um tipo muito peculiar e especial de escola.

Até hoje, infelizmente, o Mosaico tem funcionado de forma incompleta, sem muita integração entre as suas diferentes partes, e sua operação tem sido manual, através do preenchimento de formulários.

O está sendo chamado de Mosaico Digital será a versão computadorizada do Mosaico completo. Ele será, portanto, um Sistema Computadorizado de Gestão da Aprendizagem – SCGA. A “computadorização” do Mosaico não envolve, porém, apenas a digitalização de seus formulários e o preenchimento desses formulários na tela. O sistema deverá se apoiar em poderosa ferramenta de Gestão de Base de Dados que permita a integração “on the fly” das diferentes bases de dados em formulários de tela, configuráveis pelo usuário, e a resposta imediata, na tela, a consultas sofisticadas, bem como a impressão de tudo isso, em diferentes formatos, sempre que necessário ou recomendável.

A finalidade deste texto é detalhar e contextualizar os diferentes componentes do Mosaico e as diferentes bases de dados e funcionalidades que o Mosaico Digital deverá apresentar. Seu público principal é a equipe que estará desenvolvendo o Mosaico Digital.

2. Componentes Básicos do Mosaico

Como SGA o Mosaico conterá três componentes – ou subsistemas – básicos:

    • A Matriz de Competências
    • O Banco de Projetos
    • O Portfólio de Aprendizagem

A Matriz de Competências é o subsistema que define e descreve o currículo da Escola Lumiar. (Em algumas referências anteriores o termo “Mosaico” é aplicado exclusivamente a esse subsistema). Ele define, portanto, o que os alunos podem e devem aprender no âmbito da Lumiar.

O Banco de Projetos é o subsistema que descreve as partes integrantes da metodologia da Escola Lumiar. É através do trabalho com projetos que os alunos aprendem – isto é, desenvolvem competências – no âmbito da Lumiar. Se a Matriz de Competências define e descreve “o que” os alunos podem e devem aprender, o Banco de Projetos define “como” eles irão aprender o que podem e devem aprender.

Por fim, o Portfólio de Aprendizagem é o subsistema que descreve o itinerário de aprendizagem dos alunos dentro da Lumiar. Ele conterá, primeiro, uma avaliação inicial do aluno que entra na escola, que procurará detalhar quais competências (dentre aquelas definidas e descritas na Matriz de Competências) o aluno já domina ao entrar na escola, e em que nível as domina. Essa avaliação inicial servirá de base para o trabalho de aconselhamento do aluno acerca dos tipos de projeto de aprendizagem (dentre aqueles constantes do Banco de Projetos) em que deverá se engajar ao longo dos quatro bimestres do primeiro ano na escola. Em seguida, o Portfólio de Aprendizagem conterá algo equivalente ao histórico escolar do aluno: uma listagem completa e detalhada de todos os projetos de aprendizagem que o aluno vier a contratar (mesmo daqueles que ele contratar e, depois, distratar). Em terceiro lugar, o Portfólio de Aprendizagem deverá conter as avaliações do desempenho dos alunos nos projetos que ele contratou, avaliações essas feitas pelos mestres responsáveis pelos projetos. Em seguida, o Portfólio de Aprendizagem deverá conter avaliações bimestrais abrangentes do desempenho dos alunos feitas pelos educadores que lhes servirem de orientadores. Essas avaliações deverão incluir não só os aspectos relativos ao desempenho cognitivo dos alunos, mas também aspectos relativos ao que se convencionou chamar de sua “inteligência social e emocional”, isto é, às suas relações interpessoais (com dados retirados de observações de todos os educadores e da “Roda” [mecanismo democrático de solução de problemas internos da escola]), ao seu comportamento em geral (em especial fora do trabalho com os projetos), às suas atitudes (para com a vida, os outros, as coisas), aos seus valores, etc. Por fim, o Portfólio de Aprendizagem deverá conter avaliações anuais do desempenho dos alunos, que contêm o resumo de seu desenvolvimento durante o ano. Elas deverão conter os mesmos componentes das avaliações bimestrais abrangentes. A avaliação anual feita ao final dos Ciclos (Infantil, Fundamental-1, Fundamental-2 e Médio) deverá conter uma análise detalhada do desenvolvimento do aluno que justifique o prosseguimento de estudos no nível imediatamente superior.

Como se vê, cada um dos componentes básicos do Mosaico depende dos demais, o que torna o sistema um todo integrado.

A seguir vou detalhar cada um desses componentes (ou subsistemas). Mas é preciso ressaltar que é o Projeto Pedagógico da Lumiar que dá sentido ao Mosaico e o contextualiza como SGA.

3. O Currículo: A Matriz de Competências

Parece-me haver consenso acerca de que, se a Lumiar pretende ser uma escola devidamente inserida no sistema educacional brasileiro, ela deve, no mínimo, ser capaz de se “encaixar” nas concepções e orientações (currículo, metodologia, etc.) definidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).

Por isso, vou expor, sucintamente, o que me parece ser o foco dos PCNs em relação a essas duas questões: currículo e metodologia.

Observo, no início, porém, que, na minha forma de entender, os PCNs são um documento interessante, rico, complexo, mas não totalmente coerente. Suas incoerências se devem, a meu ver, ao fato de que tenta “servir a dois senhores”: propor e defender uma visão de educação (currículo e metodologia) inovadora, mas, ao mesmo tempo, manter (“não jogar fora”…) alguns elementos essenciais da visão tradicional da educação escolar.

Começo com a questão do princípio básico que orienta e norteia a estruturação e a organização curricular proposto e defendido pelos PCNs. Acredito que no mínimo duas respostas podem ser encontradas a essa questão nos PCNs (cada uma das respostas podendo ser sub-divididas em duas) . Que seja possível encontrar duas respostas nos PCNs faz parte do que me parece ser a sua incoerência básica.

A. As Disciplinas Acadêmicas como Princípio de Organização Curricular

a. A Organização Curricular por Disciplinas Acadêmicas

As primeiras séries do Ensino Fundamental (EF-1) são, no ensino tradicional, aquelas em que menos ênfase se dá às disciplinas acadêmicas. Tanto que, em muitas escolas, há um professor polivalente para essas séries.

No entanto, os PCNs para o EF-1, apresentados em dez volumes, estão organizados da seguinte forma:

1) Introdução

2) Língua Portuguesa

3) Matemática

4) Ciências Naturais

5) História e Geografia

6) Arte

7) Educação Física

8) Apresentação dos Temas Transversais e Ética

9) Meio Ambiente e Saúde

10) Pluralidade Cultural e Orientação Sexual

As séries finais do Ensino Fundamental (EF-2) têm seus PCNs apresentados com o mesmo número de volumes e a mesma organização.

b. A Organização Curricular por Blocos de Disciplinas Acadêmicas

Por outro lado, o Ensino Médio (EM) é, no Ensino Básico, aquele em que as disciplinas acadêmicas são mais visíveis – até por causa de sua aproximação com o Exame Vestibular e sua condição de porta de acesso à universidade, onde as disciplinas continuam a ser a principal forma de estruturação e organização da instituição, em si, e dos seus currículos.

No entanto, os PCNs para o EM são apresentados em quatro volumes (é verdade que bem mais grossos), organizados, basicamente, por grupos de disciplinas:

1) PCN – Ensino Médio – Bases Legais

2) Linguagens, Códigos e suas Tecnologias

3) Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias

4) Ciências Humanas e suas Tecnologias

Poucos esquemas organizativos são tão tradicionais como este: Línguas e Humanidades, Matemática e Ciências Naturais, Ciências Humanas e Sociais.

o O o

Pode parecer, portanto, pela forma em que os PCNs são divididos em volumes e organizados, que eles sugerem que os currículos do Ensino Básico (pelo menos do EF e do EM) continuem a ser estruturados e organizados de forma relativamente tradicional, por disciplinas – ou, interando algumas disciplinas, por ou blocos de disciplinas.

B. As Competências Básicas como Princípio de Organização Curricular

No entanto, o texto dos PCNs, em muitos lugares, afirmam exatamente o contrário.

Na “Carta ao Professor” que aparece no início dos PCNs do EM, o então Ministro Paulo Renato Souza informa que nos últimos anos o Ministério da Educação (MEC), de forma articulada com a sociedade, vem fazendo um grande esforço “para transformar o nosso sistema educacional” [ênfase acrescentada]. Ele explica que o EM é parte da Educação Básica (EB) – e acrescenta:

“Isso quer dizer que ele [o EM] é parte da formação que todo brasileiro jovem deve ter para enfrentar a vida adulta com mais segurança. Por isso, propomos um currículo baseado no domínio de competências e não no acúmulo de informações” [PCNs do EM, vol. I, p.11 – ênfase acrescentada].

Duas páginas depois, uma outra autoridade do MEC – o Secretário de Educação Média e Tecnológica – afirma que o MEC, junto com os educadores do país, “chegou a um novo perfil para o currículo, apoiado em competências básicas, para a inserção de nossos jovens na vida adulta” [PCNs do EM, vol. I, p.13 – ênfase acrescentada].

Páginas adiante afirma-se:

“O Ensino Médio, portanto, é a etapa final de uma educação de caráter geral, afinada com a contemporaneidade, com a construção de competências básicas, que situem o educando como produtor de conhecimento e participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como ‘sujeito em situação’- cidadão” [PCNs do EM, vol. I, p.22 – ênfase acrescentada].

Na página seguinte se pergunta: “De que competências se está falando?”.

Como que para impedir que as competências se construam como competências dentro das disciplinas acadêmicas, esclarece-se do que se trata:

“Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmico, ao contrário da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos, da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do pensamento divergente, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, do desenvolvimento do pensamento crítico, do saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimento” (PCNs do EM, vol. I, p.24 – ênfase acrescentada].

Ou seja, em meio a várias competências de alto nível, critica-se a “compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos”, característica da abordagem disciplinar, e se propõe que a escola, em vez de oferecer conhecimentos aos alunos, os capacite para “buscar conhecimento” – privilegiando não a transmissão de conhecimentos mas a construção de uma competência que, uma vez alcançada, permite que os conhecimentos sejam buscados, quando necessários.

Os PCNs deixam claro, em mais de um lugar, que a função da escola é ajudar os alunos a construir as competências básicas necessárias para “o pleno desenvolvimento humano” [PCNs do EM, vol. I, p.23 – ênfase acrescentada]. Mais adiante se esclarece que as competências básicas de que se está falando, necessárias para o desenvolvimento humano pleno, cobrem as competências necessárias tanto para o desenvolvimento pessoal como para o desenvolvimento profissional e para o desenvolvimento social (necessário “para o exercício da cidadania”) [PCNs do EM, vol. I, p.23].

Uma questão importante, portanto, é: como se classificam as competências básicas?

a. Os “Quatro Pilares” como Forma de Classificar as Competências Básicas

Daí a ênfase que dão os PCNs aos “Quatro Pilares da Educação” propostos pelo Relatório submetido à UNESCO pela Comissão coordenada por Jacques Delors:

    • Aprender a ser (Desenvolvimento Pessoal)
    • Aprender a conviver (Desenvolvimento Social)
    • Aprender a fazer (Desenvolvimento Profissional)
    • Aprender a aprender

Como muitos já apontaram, o “Aprender a aprender”, também formulado como “Aprender a conhecer”, é meio redundante nesta lista. Ele certamente faz parte do “Aprender a ser” – mas, no caso, foi destacado para enfatizar o fato de que, na nossa sociedade, o aprender é algo permanente, que não começa na escola e nela se realiza para o resto da vida, mas que se dá, do nascimento à morte, em várias esferas da vida, não estando nunca concluído. “O que se deseja”, esclarecem os PCNs do EM, “é que os estudantes desenvolvam competências básicas que lhes permitam desenvolver a capacidade de continuar aprendendo” [PCNs do EM, vol. I, pp.25-27].

Fica claramente sugerido, aqui, que esses vários “aprenderes” são, na realidade, uma forma interessante de classificar e ordenar as competências básicas que vão formar o fulcro do novo currículo. Na verdade, os PCNs contêm mais do que apenas uma sugestão. No final da seção sobre o “Papel da Educação”, afirma-se, explicitamente, o seguinte:

A educação deve ser estruturada em quatro alicerces: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser” [PCNs do EM, vol. I, p.27 – ênfase acrescentada].

Na seção sobre “A Reforma Curricular” de diz, taxativamente:

“O currículo deve . . . capacit[ar] o ser humano para a realização de atividades [sic] nos três domínios da ação [sic] humana: a vida em sociedade, a atividade produtiva e a experiência subjetiva . . . Nessa perspectiva, incorporam-se como diretrizes gerais e orientadoras da proposta curricular as quatro premissas apontadas pela UNESCO como eixos estruturais da educação na sociedade contemporânea: Aprender a conhecer . . . Aprender a fazer . . . Aprender a viver . . . Aprender a ser” [PCNs do EM, vol. I, pp.29-30 – ênfase acrescentada]

E essa forma de estruturação ou organização é coerente tanto com a Lei de Diretrizes e Bases como com a própria Constituição Federal, que estipula que o objetivo da educação é formar a pessoa, o cidadão e o trabalhador:

“A educação . . . será promovida . . . visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” [CF, Art. 205, ênfase acrescentada; cf. LDB, Art. 2º].

b. As “Inteligências Múltiplas” como Forma de Classificar as Competências Básicas

Em outros lugares, porém, os PCNs – neste caso, especialmente os PCNs do EF-1, parecem sugerir que algo parecido com as “Inteligências Múltiplas” de Howard Gardner (por ele explicitamente caracterizadas como grupos de competências) seja a melhor forma de classificar as competências com base nas quais o currículo deve ser estruturado e organizado. Eis alguns exemplos:

“O desenvolvimento de capacidades, como as de relação interpessoal, as cognitivas, as afetivas, as motoras, as éticas, as estéticas…” [PCNs do EF-1, vol.I, p.46]

“Assim, os objetivos se definem em termos de capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma formação ampla” [PCNs do EF-1, vol.I, p.67].

“Todas as definições conceituais, bem como a estrutura organizacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais, foram pautadas nos Objetivos Gerais do Ensino Fundamental, que estabelecem as capacidades relativas aos aspectos cognitivo, afetivo, físico, ético, estético, de atuação e inserção social” [PCNs do EF-1, vol.I, p.109].

o O o

Há alguma sobreposição entre os Quatro Pilares e as Múltiplas Inteligências de Howard Gardner. Ele definiu, originalmente, sete inteligências, ou áreas de competência: Intrapessoal, Interpessoal, Lingüística, Lógico-Matemática, Musical, Espacial, e Corporal-Cinestésica. As duas primeiras parecem mais ou menos equivalentes ao Aprender a Ser e ao Aprender a Conviver dos Quatro Pilares. As demais podem se encaixar também nos dois primeiros aprenderes ou, então, no terceiro e no quarto (Aprender a Fazer e Aprender a Aprender]. Mas não pretendo unir ou mesclar (“conflate”) as duas propostas.

C. A Questão dos Temas Transversais

Não resta a menor dúvida de que os Temas Transversais ocupam papel especial nos PCNs – especialmente no caso do EF-1 e do EF-2, em que ocupam três volumes inteiros. (Dos PCNs do EM eles misteriosamente desaparecem, na forma em que são estruturados os diversos volumes).

No entanto, eles parecem bem mais importantes muito mais no contexto de um currículo estruturado e organizado por disciplinas ou blocos de disciplinas do que no contexto de um currículo estruturado e organizado por competências.

Os Temas Transversais são temas que não se encaixam naturalmente em nenhuma disciplina – que requerem um enfoque interdisciplinar, ou, preferencialmente, transdisciplinar (como é o caso da chamada pedagogia de projetos, com a qual o currículo estruturado e organizado por competências tem sido sempre identificado. Dentro da pedagogia de projetos, trabalhar com o que os PCNs chamam de Temas Transversais não apresenta maior desafio, porque a maior parte dos projetos é tipicamente transdisciplinar.

D. A Proposta da Lumiar

Minha proposta é de que façamos um esforço para estruturar e organizar o currículo da Lumiar, e, por conseqüência, o Mosaico, com base em competências básicas – e, dentre as duas sugestões dos PCNs, prefiro a proposta da UNESCO, mais fácil de entender, mais divulgada, e mais ampla, assim permitindo que aspectos importantes da outra nela encontrem abrigo.

Vou procurar argumentar.

a. Por que Competências?

Parto do pressuposto de que não haja, hoje, quem seriamente queira defender um currículo estruturado e organizado por disciplinas, tout court.

No entanto, vou apresentar argumentos para a mudança de foco de disciplinas acadêmicas para competências básicas.

O relatório “Key Competencies”, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [The Definition and Selection of Key Competencies – Executive Summary. Vide www.oecd.org/edu/statistics/deseco.], sobre a evolução do Program for International Student Evaluation (PISA), que hoje é o principal elemento para determinar a qualidade relativa dos sistemas educacionais ao redor do globo, é extremamente relevante aqui. Cito algumas passagens dele.

“As avaliações do PISA começaram com comparações do conhecimento e de habilidades de alunos de diferentes países nas áreas da leitura, matemática, ciência e solução de problemas. A avaliação do desempenho dos alunos em áreas disciplinares do currículo escolar foi realizada, entretanto, com o entendimento de que o sucesso de um estudante na vida depende de um espectro muito mais amplo de competências. O Projeto Definição e Seleção de Competências (DeSeCo), da OCDE, que é resumido nesta publicação, fornece um quadro que pode orientar a extensão das avaliações de modo a abranger um domínio novo, o das competências” [ênfases acrescentadas].

“As sociedades de hoje confrontam os indivíduos com demandas complexas e desafiadoras que afetam muitos aspectos de suas vidas. O que essas demandas implicam para o desenvolvimento de competências chave que os indivíduos precisam adquirir? A definição dessas competências pode ajudar a melhorar as avaliações de quão bem preparados os jovens e jovens adultos estão para enfrentar os desafios da vida, bem como identificar os objetivos abrangentes para sistemas educacionais e para a aprendizagem ao longo da vida.”

“Uma competência não é a mesma coisa que conhecimento mais habilidades. Competências envolvem a capacidade de enfrentar demandas e desafios, de recorrer a, e mobilizar, recursos psico-sociais (incluindo conhecimentos, habilidades e atitudes) em contextos particulares. Por exemplo, a capacidade de se comunicar de forma efetiva é uma competência que faz uso de conhecimentos e habilidades de ordem lingüística, habilidades de comunicação, envolvendo até mesmo o uso de tecnologias adequado de informação e comunicação, e uma série de atitudes adequadas para com aqueles com os quais se está comunicando. “

“Os indivíduos terão necessidade de um amplo espectro de competências para enfrentar os desafios do mundo de hoje, mas seria de valor prático limitado produzir uma lista muito longa de tudo que eles podem precisar ter de fazer em diversos contextos e em diversos momentos de suas vidas. Através deste projeto, a OCDE colaborou com estudiosos, especialistas e instituições com os mais variados matizes para identificar um pequeno conjunto de competências chave, que está enraizado no entendimento teórico de como essas competências são definidas”.

Em resposta à pergunta, formulada pelo próprio relatório, acerca das razões pelas quais a questão das competências se tornou importante nos nossos dias, o relatório responde:

“A globalização e a modernização estão criando um mundo interconectado e cada vez mais diversificado. Para fazer sentido desse mundo, e operar bem nele, os indivíduos precisarão, entre outras coisas, dominar tecnologias que mudam a cada dia e fazer sentido de enormes quantidades de informação. Eles precisarão também enfrentar desafios coletivos como sociedades – tais como equilibrar crescimento econômico com sustentabilidade do meio ambiente e prosperidade com eqüidade social. Nestes contextos, as competências de que os indivíduos necessitam para alcançar objetivos que se tornam cada vez mais complexos, requerem mais do que o domínio de certos conhecimentos e habilidades estreitamente definidos”.

b. Por que não Competências E Disciplinas?

Vou procurar discutir agora o ponto de vista daqueles que procuram compatibilizar as duas propostas e defendem um currículo estruturado e organizado com base em competências e disciplinas.

Vou argumentar aproveitando algo que é retirado do meu livro (que estava concluído em 2002 e não está mais…).

Nilson José Machado é um dos que tenta, em minha opinião equivocadamente e sem sucesso, compatibilizar as duas visões acerca dos princípios organizadores do currículo: disciplinas e competências [Vide seu artigo “Sobre a Idéia de Competência” [in Philippe Perrenoud, Monica Gather Thurler et alia, As Competências para Ensinar no Século XXI: A Formação dos Professores e o Desafio da Avaliação, tradução para o Português de Cláudia Schilling e Fátima Murad de conferências proferidas pelos dois autores principais no Brasil em 2001, às quais foram acrescentados artigos de autores brasileiros (ArtMed Editora, Porto Alegre, 2002, pp. 137-155]. Ele primeiro critica o currículo centrado em disciplinas, quando diz:

“Há algumas décadas, porém, a escola organiza-se como se os objetivos da educação derivassem daqueles que caracterizam o desenvolvimento das ciências, sendo estes decorrentes da busca do desenvolvimento das diversas disciplinas científicas. Estudamos matérias, conteúdos disciplinares, para chegar ao conhecimento científico, que garantiria uma boa educação formal; a formação pessoal decorreria daí, naturalmente. Por mais caricata que possa parecer tal caracterização, ela subjaz tacitamente à organização da escola, centrada, de forma excessiva, na idéia de disciplina. Os currículos fixam as matérias, a grade horária organiza o tempo disponível para explorá-las e as pessoas devem aprendê-las para, ao final da educação básica, serem aprovadas no vestibular e assim seguirem aprendendo mais disciplinas na universidade. Essa perspectiva parece em crise já há algum tempo” [pp. 138-139].

Em seguida, ele diz algo que parece indicar que defende um currículo estruturado e organizado por competências:

“As ciências precisam servir às pessoas e a organização da escola deve visar, primordialmente, ao desenvolvimento das competências pessoais. As ciências não são um fim em si, nem podem ser consideradas um obstáculo ao desenvolvimento pessoal, mas precisam ser vistas na perspectiva de meios, de instrumentos para a realização dos projetos pessoais. E é nessa perspectiva que as escolas precisam organizar-se, reestruturando seus tempos e seus espaços” [p.139, ênfase acrescentada].

Até aqui,, perfeito. Mas depois dessas afirmações, e, em especial do que parece ser uma clara defesa da tese de que o currículo deve ser estruturado e organizado por competências (o conhecimento disciplinar ficando transversalizado), vem a surpresa. Diz ele:

“Para que não paire qualquer dúvida sobre o conteúdo da reflexão apresentada a seguir, registre-se aqui a conclusão que se buscará fundamentar: a organização da escola é, e continuará a ser, marcadamente disciplinar; os professores são, e continuarão a ser, professores de disciplinas, não havendo qualquer sentido na caracterização de um professor de ‘competências’” [p.139]. “Na escola, temos e continuaremos sempre a ter professores de disciplinas, não de capacidade de expressão, mas cada um, por meio de sua disciplina, busca o desenvolvimento da capacidade de expressão” [p. 142].

Aqui, nesta última passagem, Nilson Machado defende (ou assim parece) a tese da transversalização das competências – não a tese da transversalização das disciplinas (que é a tese que eu defendo). Ele parece acreditar que é só dentro das disciplinas (disciplinas científicas?) que se desenvolvem competências.

É uma pena que ele não persiga até o fim a radicalidade de algumas de suas idéias – até porque, em outros aspectos, seu artigo caminha na direção oposta do que ele afirma aqui, nas pp. 139 e 142. Sua insistência, nessas páginas, na transversalização das competências deixa um sabor, se não de contradição, pelo menos de grande tensão em seu artigo.

Vide, por exemplo, além das passagens já citadas, o que ele tem a dizer cerca de quatorze páginas adiante:

“Ocorre que mesmo com todas as atenções escolares voltadas explicitamente para as disciplinas, o que resta de mais valioso, o que permanece depois que o tempo apaga da memória os conteúdos / pretextos que não lograram contextualizar-se, que não se constituíram em textos / significados ao longo da vida / narrativa, são as competências pessoais” [p. 153].

Entretanto ele teimosamente acrescenta depois da passagem citada: “desenvolvidas tacitamente por meio das disciplinas”…

Se, como diz Nilson Machado, “o que resta de mais valioso, o que permanece depois que o tempo apaga da memória os conteúdos / pretextos que não lograram contextualizar-se”, são as competências pessoais, é com base nelas que deve ser organizado e implementado o currículo – não com base nas disciplinas. [A passagem de Nílson Machado em que ele se refere às competências como o “que resta de mais valioso, o que permanece depois que o tempo apaga da memória os conteúdos / pretextos que não lograram contextualizar-se”, destaca o fato de que nos esquecemos muito facilmente de informações que recebemos – mas raramente “desaprendemos” uma competência ou uma habilidade desenvolvida. É esse fato que leva Michael Hammer a caracterizar a educação como “aquilo que permanece conosco depois de nos esquecermos do que nos foi ensinado”. Vide Michael Hammer, Beyond Reengineering: How the Process-Centered Organization is Changing our Work and our Lives (Harper Business, New York, 1996), p. 237.] São as disciplinas que devem ser transversalizadas – não as competências, como ele sugere, quando, por exemplo, diz que as “competências pessoais [devem ser] desenvolvidas tacitamente [i.e., transversalmente] por meio das disciplinas”. Os conteúdos disciplinares são, como o próprio Nilson Machado admite [p. 153], apenas “pretextos” para o desenvolvimento de competências.

Não há nenhum argumento e nenhuma evidência no seu artigo para a tese de que competências só podem ser desenvolvidas por meio das disciplinas (muito menos disciplinas científicas) – que o estudo das disciplinas (científicas ou não) é condição necessária para o desenvolvimento de competências. Não existe evidência porque não é… Dependendo da forma como forem abordadas, as disciplinas podem ser úteis no desenvolvimento de competências – nunca a única forma de desenvolvê-las.

E. Como Ficam os Conteúdos Disciplinares?

Nílson José Machado afirma, como vimos::

“A organização da escola é, e continuará a ser, marcadamente disciplinar; os professores são, e continuarão a ser, professores de disciplinas, não havendo qualquer sentido na caracterização de um professor de ‘competências’” [p.139]

É evidente que não faz sentido fazer do professor um professor de competências. Mas não é nem de longe evidente que a alternativa “ou professor de disciplinas ou professor de competências” cubra todas as possibilidades. O que é evidente é que os professores são, hoje, professores de disciplinas. Mas não é evidente que eles continuarão a sê-lo – como se essa questão fosse decidida por alguma forma de determinismo histórico. Eles só continuarão a sê-lo se nós – as pessoas que compõem a sociedade na qual a escola atua – quisermos que eles continuem a ser. Se quisermos que eles tenham um perfil diferente, adequado para o que vimos discutindo, eles não serão nem professores de disciplinas nem de competências. Serão, simplesmente, professores – ou educadores, que é um termo melhor (porque, na realidade, estarão ajudando os outros a se educarem).

É curioso que Nílson Machado faça uma afirmação dessas, porque em outros locais do mesmo artigo, como vimos, ele descreve – em termos que parecem denunciar – o fato de que “a escola organiza-se como se os objetivos da educação derivassem daqueles que caracterizam o desenvolvimento das ciências, sendo estes decorrentes da busca do desenvolvimento das diversas disciplinas científicas” [p. 138]. Ao descrever a escola atual, ele diz:

“[Nela] estudamos matérias, conteúdos disciplinares, para chegar ao conhecimento científico, que garantiria [sic; NB o condicional] uma boa educação formal; a formação pessoal decorreria [sic; NB] daí naturalmente” [p. 138].

Depois de dizer isso, observa:

“Por mais caricata que pareça tal caracterização, ela subjaz tacitamente à organização da escola, centrada, de forma excessiva [NB], na idéia de disciplina. Os currículos fixam as matérias, a grade horária organiza o tempo disponível para explorá-las e as pessoas devem aprendê-las para, ao final da educação básica, serem aprovadas no vestibular e assim seguirem aprendendo mais disciplinas na universidade” [p. 138].

Na página seguinte ele constata que “essa perspectiva parece estar em crise já há algum tempo” (p. 139) e observa que “a organização da escola deve visar, primordialmente, ao desenvolvimento das competências pessoais” e continua:

“As ciências [isto é, as disciplinas] não são um fim em si (…) mas precisam ser consideradas um obstáculo ao desenvolvimento pessoal, mas precisam ser vistas na perspectiva de meios, de instrumentos para a realização dos projetos pessoais [NB]. E é nessa perspectiva que as escolas precisam organizar-se, reestruturando seus tempos e seus espaços” [p. 139].

Até aqui concordo plenamente com suas afirmações. É o que vem a seguir, quando começa a falar em competências (que é o tema do artigo), que me causa problemas. Diz ele:

“No Brasil, nos últimos anos, (…) a demanda por uma organização alternativa do trabalho escolar em seus diversos níveis, consentânea com o privilégio das competências pessoais, tem crescido sobremaneira. Contudo, em sintonia com tal demanda, tem crescido substancialmente um terrível mal-entendido. Trata-se da idéia de que disciplinas e competências disputam os mesmos espaços e tempos escolares, contrapondo-se de modo radical: uma organização visando sobretudo às competências pessoais significaria um abandono da idéia de disciplina(…) Porém, nenhuma dicotomia parece mais inadequada ou descabida do que a que se refere ao par disciplina / competência” [p. 139; ênfase acrescentada].

Aqui discordo – mas fazendo algumas qualificações.

É preciso distinguir pelo menos duas coisas.

Uma é a idéia de um princípio que serve de base para a estruturação e organização do currículo escolar.

A outra é a implementação desse currículo (que abrange as questões relacionadas à natureza da função do professor).

Defendo, sim, a tese de que, como princípio básico de estruturação e organização curricular, ou usamos disciplinas ou usamos competências – ou umas ou outras, não as duas, e não havendo, no momento, terceira alternativa. Entretanto, não defendo a tese de que, na implementação do currículo, competências e disciplinas se excluam. Venho há muito tempo dizendo, pelo contrário, que as informações oriundas das disciplinas têm seu lugar mesmo num currículo organizado por competências – mas que devem se transversalizar, isto é, ser usadas, sempre que relevantes e pertinentes, nos projetos de aprendizagem voltados para a construção de competências.

É verdade que reconheço o fato, que me parece difícil de contestar, que as informações relevantes e pertinentes para o desenvolvimento de projetos voltados para encontrar resposta ou solução para questões ou problemas interessantes dificilmente se enquadram em compartimentos disciplinares, razão pela qual acredito que a maioria dos projetos interessantes estarão a requerer, para o seu desenvolvimento, um enfoque transdisciplinar (e nem mesmo inter-, multi-, ou pluridisciplinar). Isso não quer dizer, porém, como Nílson Machado parece entender, que acredito que, se a ênfase é em competências, informações disciplinares estão excluídas [“são jogadas fora”, no linguajar mais comum], nem, muito menos, que os professores, se não são professores de disciplinas, terão de ser professores de competências.

É falacioso (non sequitur) pretender que a tese anterior (relativa ao princípio organizador do currículo) implica esta. Não implica. Uma coisa é o princípio que serve de base para a estruturação e organização do currículo, outra coisa é a forma de implementar esse currículo e, dentro dela, a forma em que o professor deve atuar para promover os objetivos desse currículo.

Nílson Machado em determinados lugares parece reconhecer isso, como quando diz:

“Outros exemplos poderiam ser apresentados, mas, por enquanto, o interesse pela exemplificação destina-se apenas à associação das competências a elementos de um espectro de características pessoais: as pessoas devem ser capazes de se expressar, de argumentar, etc., e as disciplinas devem servir de meios, de instrumentos para o desenvolvimento de tais capacidades” [p. 142].

Bem colocado. Mas essa passagem, se não contradiz passagens anteriores, fica em tensão com elas. Aqui fica evidente o que é fim e o que é meio: o fim de um currículo escolar é ajudar os alunos no “desenvolvimento de tais capacidades”; as informações disciplinares são meios. Ora, não se organiza um currículo com base nos meios, mas, sim, com base nos seus fins. Ou seja, se o fim da escola é contribuir para que os alunos desenvolvam competências, o currículo deve ser organizado com base nesse princípio, isto é, com base numa classificação de competências (como a fornecida pelos Quatro Pilares). As informações disciplinares aparecem, em sua implementação, quando contribuem para esse fim.

A Matriz de Competências é a tentativa de classificar e organizar as competências básicas necessárias para viver, como pessoa (indivíduo), como cidadão e como profissional no século 21. Além de classificadas, segundo os Quatro Pilares, as competências precisam ser organizadas de modo a mostrar, para cada competência, as sub-competências (caso existam), as habilidades, os valores, as atitudes e as informações ou conhecimentos que o desenvolvimento daquela competência precisa “mobilizar” (para usar o verbo sugerido por Phillippe Perrenoud). Além disso, é preciso especificar em que idade essa competência normalmente já foi desenvolvida, levada em conta a média das crianças.

Como bem ressalta o relatório da OCDE, essa Matriz de Competências não precisa ser exaustiva. Ela deve incluir competências básicas (aquelas que o relatório chama de “competências chave”). E, mesmo assim, apenas aquelas que são consideradas absolutamente essenciais para o desenvolvimento humano pleno (naqueles três componentes: pessoal, social e profissional).

4. A Metodologia: O Banco de Projetos

O método de desenvolver competências utilizado na Lumiar é, como visto, o trabalho com projetos de aprendizagem (e não o ensino em uma aula tradicional ministrada numa sala de aulas). Isto sendo assim, é preciso que a escola tenha um banco de projetos suficientemente rico para permitir que os alunos encontrem, nos diversos projetos, oportunidades reais de desenvolver as competências que precisarão desenvolver – ou porque elas são essenciais para todos, ou porque elas são essenciais para o seu projeto de vida.

O Banco de Projetos, portanto, é uma base de dados acerca de projetos de aprendizagem que os alunos podem escolher e que serão coordenados por pessoas da comunidade (profissionais liberais, homens de negócio, artistas, trabalhadores de todos os tipos, etc.) Para coordenar um projeto não basta que uma pessoa possua uma das competências básicas da Matriz da Competência: é preciso, também, que ela saiba compartilhá-la com os outros e que demonstre paixão tanto pela competência como pelo compartilhá-la.

Inúmeras pessoas da comunidade, inclusive pais de alunos, possuem interessantes competências que gostariam de compartilhar com os alunos e estão dispostos a doar seu tempo, durante curtos períodos de tempo (de duas semanas a dois meses) ajudando alunos interessados a dominar essas competências.

O Banco de Projetos deve incluir não só uma descrição pormenorizada do projeto e das competências e sub-competências a serem desenvolvidas durante sua execução, como das habilidades, conhecimentos, valores e atitudes que serão mobilizadas no processo. O Banco de Projetos também deve listar as pessoas que podem coordenar esse projeto e conter informações sobre seu perfil pessoal e profissional.

A Matriz de Competências e o Banco de Projetos terão “elos de ligação” entre si. Esses elos amarrarão as competências – o “o quê” os alunos deverão desenvolver – com as formas desenvolvê-las – o “como”, a metodologia.

5. A Avaliação: O Portfólio de Aprendizagem

O Portfólio de Aprendizagem é um banco de dados sobre os aluno.

O Portfólio de Aprendizagem deve conter, em primeiro lugar, dados biográficos sobre os alunos.

Em segundo lugar, o Portfólio de Aprendizagem deve conter uma avaliação de cada aluno, realizada na hora de sua entrada na escola, para que fiquem registradas as competências que o aluno já possuía ao entrar na escola.

Em terceiro lugar, deve constar do Portfólio de Aprendizagem um relatório sobre especiais aptidões, habilidades e interesses dos alunos. Se alguém já sabe tocar um instrumento musical e demonstra interesse em música, isso deve ser registrado. Se alguém demonstra interesses em quebra-cabeças e desafios lógicos, isso deve ser registrado. Se alguém joga pratica um esporte de maneira especialmente hábil, isso deve ser registrado.

Com os alunos mais velhos, deve se explorar, no processo avaliativo de ingresso, se já pensaram em um projeto de vida – posto que o projeto de vida é essencial para o desenvolvimento de competências. Na realidade, é o projeto que vai determinar quais competências, além daquelas absolutamente essenciais para todos, cada aluno deve desenvolver.

Em quarto lugar, o Portfólio de Aprendizagem deve conter um relato pormenorizado de sua passagem pela escola. Nesse relato deve ser registrado tudo o que é relevante para o desenvolvimento pessoal do aluno – em especial os projetos de aprendizagem de que participou e como se desempenhou. É importante, nesse registro, avaliar o desenvolvimento de competências ao longo da participação nos projetos.

Em quinto lugar, deve constar do Portfólio de Aprendizagem registros periódicos (bimestrais, por exemplo) e detalhados do desenvolvimento do aluno, para que se possa aferir como ele progride em sua aprendizagem – em relação à Matriz de Aprendizagem e o seu projeto de vida.

Em sexto lugar, o Portfólio de Aprendizagem deve conter registros da apropriação, por cada aluno, de conteúdos disciplinares envolvidos na execução dos projetos – tendo em vista, no caso dos mais velhos, a eventual necessidade de prestar um exame vestibular tradicional.

Transcrito em Salto, 20 de Setembro de 2007 (texto elaborado de Maio a Agosto de 2007)

O Projeto Pedagógico da Lumiar

A Lumiar se vê e se define como uma Escola Inovadora.

A expressão “Escola Inovadora” precisa ser esclarecida. O fato de que a Lumiar se vê e se define como “escola” (e não como outro tipo qualquer de instituição) impõe a ela um certo tipo de natureza institucional, do qual ela não pode fugir: a Lumiar se vê e se define como um ambiente de aprendizagem formal. Isso significa não só que ela tem alunos que vêm até ela para aprender, mas também que ela tem uma proposta clara do que é que esses alunos podem e devem aprender, em situações de aprendizagem formalmente estruturadas, enquanto estiverem na escola, e que assume a responsabilidade de conseguir que aprendam.

(Não resta dúvida de que os alunos, mesmo enquanto na escola, também aprendem, e bastante, em situações de aprendizagem não-formais, simplesmente convivendo uns com os outros, com os educadores, com os mestres, com a direção da escola, com os recursos materiais de aprendizagem disponibilizados pela escola, como livros, computadores, Internet, etc.).

Se o ser escola identifica o que a Lumiar tem em comum com outras instituições congêneres, o ser inovadora aponta para sua “diferença específica”, isto é, para aquilo que a diferencia de outras escolas.

A escolha do termo “inovação”, neste contexto, é extremamente significativa.

A Lumiar não se vê e define como parte de um movimento de (mais uma) reforma da escola ou da educação escolar. Uma reforma é um processo de mudança que, em geral, tenta mudar uma instituição, ou por incremento (acrescentando-lhe componentes, aspectos ou funções, como, por exemplo, quando se procura promover a introdução maciça da tecnologia digital na escola), ou por substituição (substituindo por outro um dos atuais componentes da instituição escolar, como por exemplo, o currículo, ou a metodologia, ou a forma de avaliação, ou até mesmo a forma de gestão). Reformas, portanto, normalmente são incrementais ou parciais – e dificilmente avançam além da forma presente da instituição – i.e., além do paradigma pedagógico que a escola adota.

A Lumiar se vê e se define como parte de um movimento de transformação da escola. Transformar, no caso, significa ir além da forma presente, mudando o paradigma (sem, no entanto, perder a sua natureza essencial de ambiente formal de aprendizagem). O câmbio de paradigma se dá na medida em que a Lumiar busca mudanças sistêmicas, isto é, que não são parciais (afetando apenas um dos componentes da instituição escolar), e transformativas, isto é, que não são incrementais (acrescentando componentes novos a uma estrutura não adequada para absorvê-los ou até mesmo incapaz de fazê-lo).

Por que a Lumiar opta por essa alternativa radical de transformar, e, assim, reinventar a escola em vez de abraçar a alternativa menos contundente de reformá-la?

A educação, aí incluída a educação escolar, não se dá num vácuo: ela acontece num contexto histórico-social – que inclui elementos culturais, políticos, econômicos, e tecnológicos (cuja importância não é necessariamente a da ordem em que esses termos são aqui listados). Quando esse contexto se altera, é inevitável que a educação, em especial a escolar, se altere também (apesar da inevitável resistência de seus principais agentes, os profissionais da educação). Quando o contexto se altera drasticamente, a transformação ou reinvenção da educação escolar se torna inevitável.

Deixando a educação temporariamente de lado, ilustro com dois exemplos de outras áreas.

Desde tempos imemoriais um homem andando a cavalo era a única forma de transmitir mensagens entre emissores e recipientes localizados em lugares distantes. Cerca de cento e cinqüenta anos atrás, na segunda metade do século XIX, foi criado, nos Estados Unidos, um sistema profissional para transmitir mensagens por esse meio: o Pony Express. Usando rotas mais curtas do que uma diligência podia fazer (pois a diligência tinha de seguir as estradas), e usando homens e montarias cada vez mais selecionados, o Pony Express alcançou a notável proeza de entregar uma mensagem de uma costa à outra dos Estados Unidos em apenas dez dias (velocidade quase tão rápida quanto a do Correio Brasileiro de poucos anos atrás). Mas o contexto mudou: o telégrafo e a estrada de ferro se esparramaram pelos Estados Unidos, unindo Leste e Oeste, Norte e Sul. Num contexto assim, mudanças incrementais e parciais no Pony Express, o sistema de entrega de mensagens vigente, não seriam suficientes: não adiantava arrumar homens que conhecessem rotas ainda mais curtas e montarias que corressem mais rápido e resistissem mais tempo correndo. O modelo estava condenado: tinha de ser transformado em algo diferente, que fizesse uso do telégrafo e da estrada de ferro. E foi o que aconteceu. Qualquer mudança que ficasse aquém disso estava fadada ao fracasso. Hoje o Pony Express tem interesse apenas histórico.

Outro exemplo, parecido, era o do barco a vela Clipper como meio de transporte (não como esporte). Nada tão eficiente (e lindo!) havia sido inventado até então. Por um tempo, o Clipper foi sendo aperfeiçoado com mudanças parciais e incrementais de modo a ficar mais rápido e eficiente. Mas havia um problema que não era possível resolver com esse modelo: quando faltava vento, a navegação era impossível. Por isso, a utilidade do modelo era limitada. Quando surgiu o barco a vapor, o modelo teve de ceder lugar. Mudanças parciais e incrementais não iriam manter o Clipper competitivo com o novo meio de transporte: apenas uma mudança radical no modelo, que o transformasse e reinventasse os meios de transporte pela água, tinha condições de ser bem sucedida. E foi o que aconteceu.

No caso da escola, chegamos ao ponto em que mudanças parciais e incrementais também não funcionam mais. É preciso pensar em mudanças sistêmicas e transformativas. A Lumiar é uma tentativa de promover essas mudanças. Elas abrangem currículo, metodologia e avaliação – mas não só: abrangem também a visão da educação, da aprendizagem, e do papel da liberdade e da autonomia na aprendizagem e no processo de tomada de decisão dentro da escola. Nesse processo, até mesmo as funções dos profissionais que atuam dentro da escola precisou ser redefinida.

Vejamos quais são os principais elementos da Proposta Pedagógica da Lumiar.

A. Visão da Educação

A Lumiar vê a educação como um processo de desenvolvimento mediante o qual o ser humano, que nasce incompetente e dependente, se torna um adulto competente e autônomo e, no devido tempo, alcança realização pessoal. Esse processo é indispensável para a sobrevivência não parasítica do ser humano – mas vai além disso. O ser humano tem uma natureza relativamente aberta, que lhe permite definir, em grande medida, o que ele deseja fazer de sua vida, isto é, o que ele quer se tornar como ser humano. É por isso que seres humanos podem definir ou escolher projetos de vida e alcançar realização pessoal que vai além da simples sobrevivência.

Embora nasçam incompetentes e dependentes, os seres humanos nascem com uma incrível capacidade de aprender: é isso que torna a educação possível.

A educação se dá fora da escola, durante a vida toda. Mas a escola pode ser um ambiente de aprendizagem importante, se organizado de forma coerente com os princípios aqui detalhados.

B. Visão da Aprendizagem

Aprender não é simplesmente absorver e acumular informações: aprender é tornar-se capaz de fazer o que antes não se conseguia fazer. Essa visão da aprendizagem faz com que aprender seja algo eminentemente ativo (interativo, colaborativo, etc.), relacionado acima de tudo ao fazer – não a um fazer mecânico, em que apenas o corpo participa e a mente não tem lugar, mas um fazer consciente, decorrente de tomada de decisão intencional e orientado por propósitos livremente escolhidos.

Nessa visão, aprender, num contexto escolar, não é algo que os professores produzem nos alunos, mas é um savoir-faire que os alunos ativamente constroem – admitidamente, não sozinhos, mas interagindo com os professores e o ambiente e colaborando com seus pares.

C. O Currículo

O currículo é o conjunto do que os alunos podem e devem aprender na escola.

Essa formulação, contendo esses dois verbos que claramente não são sinônimos, já deixa entrever que o termo “currículo” tem, no contexto da Lumiar, um sentido duplo.

De um lado, o currículo, em seu sentido mais lato, contém uma lista ampla, organizada, por “megacompetências”, das competências, com as respectivas sub-competências e habilidades, que a escola, como ambiente de aprendizagem formal e estruturado, espera poder oferecer aos seus alunos ao longo dos anos que permanecerem na escola. Nesse sentido mais amplo, o currículo é o conjunto daquilo que o aluno pode aprender na escola.

Não faz o menor sentido esperar que todos os alunos – ou mesmo alguns dos alunos – venham a aprender tudo o que a escola, como ambiente de aprendizagem rico e flexível, oferece. Mas faz todo sentido definir que algumas coisas todos os alunos devam aprender – e até mesmo que todos os alunos devem desenvolver algumas competências em todas as áreas (megacompetências) em que se organizam as competências.

De outro lado, portanto, e em decorrência do que acaba de ser dito, o currículo, em seu sentido mais estrito, é o sub-conjunto das competências, sub-competências e habilidades que cada aluno, devidamente orientado pelos seus pais e pelo seu conselheiro na escola, e tendo em vista seus interesses, talentos e, oportunamente, projeto de vida, deve desenvolver. Dadas as diferenças individuais de talentos e interesses, e a diversidade possível e real de projetos de vida, o sub-conjunto de competências de que cada aluno resolve se valer pode ser único para cada um dos alunos. Isso “despadroniza” o currículo pessoal e introduz escolha e, por conseguinte, liberdade na estrutura curricular.

D. A Metodologia

A metodologia de aprendizagem adotada pela Lumiar é uma metodologia ativa: a Lumiar parte do pressuposto de que a melhor forma de aprender é agindo, fazendo, transformando projetos em realidade. É assim que se aprende a viver – isto é, a transformar um projeto de vida em realidade. A metodologia da Lumiar é, portanto, uma metodologia de projetos de aprendizagem.

Essa metodologia se sustenta no princípio de que há várias formas de aprender o que é preciso aprender. Uma criança aprende a falar, em geral numa idade pré-escolar, sem ter aulas de fala que a ensinem que a fala consiste na emissão de sons que sejam identificáveis com palavras que têm sentido, que a emissão de sons se dá controlando a passagem de ar pela boca (e, em parte, pelo nariz), que há sons labiais, dentais, guturais, nasais, etc. A criança aprende a falar fazendo outras coisas, ou seja, envolvendo-se em projetos para os quais o falar é essencial ou importante. Ela vê os adultos e outras crianças falando uns com os outros, conclui que falar deve ser “um barato”, resolve que vai falar também, começa imitando alguns sons dos adultos e criando outros que só ela sabe o que significam, sendo auxiliada e corrigida mas recebendo apoio e incentivo – até que ela consegue dizer uma série de coisas importantes para ela, primeiro de forma imperfeita, cuja compreensão exige enorme boa vontade dos adultos, mas, no devido tempo, de forma cada vez mais aperfeiçoada.

A metodologia de projetos de aprendizagem se sustenta também em outro princípio: o de que o melhor projeto é aquele no qual a criança tem interesse e no qual se engaja com prazer. Isso não quer dizer que a criança só aprende quando está se divertindo. Significa, isto sim, que a criança deve ver o sentido daquilo que ela está fazendo e entender a sua contribuição para a sua aprendizagem e o seu desenvolvimento. Crianças conseguem concentrar sua atenção em tarefas bastante difíceis e mesmo penosas se compreendem que aquelas tarefas contribuem para o aprendizado de algo que consideram importante. Basta prestar atenção em uma criança aprendendo a nadar, ou a andar de bicicleta, ou a dominar os passos do balé, ou a praticar no piano ou no violino para concluir que ela é capaz de feitos impressionantes de aprendizagem por processos e atividades difíceis e penosos – desde que esteja convencida de que aqueles meios levam a objetivos que ela quer alcançar.

A metodologia de projetos de aprendizagem se sustenta, ainda, em um terceiro princípio: ao aprender uma coisa, freqüentemente aprendemos também outras. Uma criança pode se dedicar, por algum tempo (semanas ou mesmo meses) a estudar algo bastante específico, como, por exemplo, a questão se existe homossexualidade entre, digamos, os papagaios. Para responder a essa indagação ela observa papagaios e outros pássaros semelhantes (araras, maritacas, periquitos), lê tudo o que encontra sobre o assunto, conversa com outras pessoas, especialmente com biólogos e veterinários, pensa e reflete, e, oportunamente, chega a uma conclusão. Ao mesmo tempo em que se dedicava a essa questão, porém, ela estava aprendendo a fazer pesquisa, a procurar respostas para questões cuja resposta é desconhecida, estava aprendendo a: coletar informações, organizar informações, analisar e avaliar informações, inferir outras informações a partir de um conjunto dado de informações, chegar a conclusões, apresentar suas conclusões de forma ordenada e persuasiva, etc. Ou seja, trabalhando num projeto sobre “Homossexualidade entre as aves”, ou mesmo num projeto mais estreito, “Podem os papagaios ser homossexuais?”, ela desenvolveu uma série de competências e habilidades que vão lhe ser extremamente úteis pelo resto de sua vida.

A Lumiar não é, como veremos adiante, uma escola libertária, laissez-faire, que deixa os alunos à sua própria sorte na escolha dos projetos que vão desenvolver. Ela é proativa e propõe aos alunos uma gama de projetos pelo menos a cada bimestre. Esses projetos terão focos específicos, mas em todos eles os alunos poderão aprender muito mais do que o consta do foco específico de cada projeto. Um projeto pode ter como foco específico a criação de maquetes de argila. Mas sua execução envolve criar uma maquete da região onde está situada a escola e, assim, os alunos têm de aprender a observar e conhecer o seu ambiente físico, a medi-lo, a representá-lo em três dimensões, etc.

Mas, como disse atrás, há mais de uma maneira de aprender determinada coisa. Assim, há razoável redundância nas competências e habilidades que podem ser desenvolvidas nos diferentes projetos. E é isso que permite que os alunos escolham os projetos de que vão participar – mas não o façam sozinhos, mas, sim, com a ajuda dos pais e dos educadores da escola. O registro de seu itinerário de aprendizagem – seu Portfólio de Aprendizagem – sempre mostrará as lacunas que ainda existem no seu aprendizado, e, com base nele, pais e educadores se engajarão no trabalho educativo de mostrar ao aluno a importância de aprender isso ou aquilo, cientes de que há vários projetos diferentes em que o aluno pode desenvolver as competências e habilidades de que carece.

Como no caso do Currículo, aqui também há, de um lado, a lista dos projetos que a escola propicia aos alunos, e, de outro lado, a lista, bem mais restrita, dos projetos que cada um cursou, ou se comprometeu a cursar.

E. A Avaliação

A avaliação constante e permanente dos alunos é parte essencial do trabalho da escola. Os alunos são avaliados ao entrar na escola, dentro da escola são avaliados dia-a-dia e semana-a-semana (a “Roda” tem uma função educativo-avaliativa), são avaliados nos projetos, são avaliados ao final do bimestre, são avaliados ao final do ano… É pela avaliação que se constata se estão aprendendo, se estão se desenvolvendo nos múltiplos aspectos em que consiste o seu desenvolvimento.

F. Os Profissionais da Escola

Além do corpo diretivo, do pessoal de apoio e dos estagiários, a Lumiar tem dois tipos de profissionais com funções claramente pedagógicas: os educadores e os mestres.

Os educadores (tem se procurado outra designação para a função) trabalham na escola em tempo integral e têm a função de coordenar e supervisionar os alunos. Cada educador tem sob sua responsabilidade um certo número de alunos, em relação aos quais ele atua como orientador e mentor. É função dos orientadores fazer a avaliação geral de cada um dos alunos sob sua responsabilidade ao final de cada bimestre e no final do ano.

Os mestres (também aqui se tem procurado outra designação) são responsáveis pelos projetos e coordenam sua execução. A eles cabe articular os projetos com a Matriz de Competências e avaliar os alunos que contrataram seus projetos.

A Escola Lumiar, assim, desdobra entre dois profissionais as funções que são atribuídas a um só – o professor – na escola tradicional.

G. A Forma de Gestão

A Escola Lumiar se vê e se define como uma escola democrática.

É preciso, em primeiro lugar, distinguir uma escola democrática do que pode ser chamado de escola libertária. Na maioria das escolas que se definem como libertárias (Summerhill, Sudbury Valley, etc.) há:

    • Há uma série de regras e normas, explicitamente aceitas pela comunidade como um todo em assembléia geral, que regulam o comportamento de todos, alunos, professores e “staff”;
    • As regras e normas só são aprovadas se forem coerentes com o princípio de que se deve preservar o maior espaço possível para a liberdade de ação de todos, só sendo vedadas ações que causam danos a terceiros ou que violam seu direito a uma liberdade equânime;
    • Qualquer presunção de danos a terceiros ou de violação de direitos é analisada em assembléia, geral ou dos próprios alunos, e os responsáveis podem ser punidos;
    • No tocante à aprendizagem, há total liberdade para aprender, que inclui a liberdade de não aprender;
    • Os mestres e o “staff” da escola só intervêm na aprendizagem dos alunos quando explicitamente solicitados a fazê-lo pelos alunos;
    • A gestão da escola é feita de forma coletiva, em assembléias, de que participam, com direito a voto, todos os alunos (inclusive os menores), professores e “staff”.

A Lumiar se pretende uma escola democrática, não libertária, porque ela acredita que uma instituição que pretende se rotular de escola não pode ser, em relação à aprendizagem dos seus alunos, puramente reativa, esperando que eles solicitem sua intervenção. Ela tem de ter uma proposta pedagógica mais propositiva (menos negativa, menos laissez-faire do que a das escolas libertárias), como a que foi esboçada atrás. Ela se propõe, como já visto, a disponibilizar para seus alunos as seguintes contribuições substantivas:

    • Um currículo, no caso a Matriz de Competências;
    • Uma metodologia, no caso a Metodologia de Projetos de Aprendizagem;
    • Um corpo de profissionais, no caso os mestres, que oferecem projetos de aprendizagem nos quais os alunos podem desenvolver suas competências e habilidades;
    • Um corpo de profissionais, no caso os educadores, que ativamente participam da vida dos alunos, orientando-os, aconselhando-os, servindo como mentores;
    • Participação dos pais na orientação dos filhos, junto com os educadores, na escolha dos projetos de aprendizagem que devem contratar;
    • Mecanismos de avaliação sistemática e periódica dos alunos pelos mestres e pelos educadores.

Dentro desse contexto, a Lumiar tem como princípio respeitar a liberdade de aprender dos alunos. Isso significa que se um aluno decide que não quer fazer um projeto, depois do aconselhamento pelos educadores e pelos pais, essa decisão é respeitada. Além disso, se um aluno contratar um projeto, e, posteriormente, concluir que o projeto não era o que ele esperava ou que, por alguma razão, não deseja mais participar dele, a presunção de que contratos devem ser honrados pode ser derrotada se as razões e considerandos do aluno forem julgados procedentes.

No que tange à disciplina, a Lumiar tem, como as escolas libertárias, regras claras que proíbem os alunos de agir violentamente contra outras pessoas, de interferir com seus direitos, e de danificar propriedade, alheia ou dele mesmo. O mecanismo da “Roda”, já mencionado, permite que alunos que não se comportarem segundo essa expectativa tenham seu comportamento analisado, avaliado, e, se necessário, punido, pela assembléia dos alunos.

Em outros aspectos (planejamento estratégico, recursos humanos, orçamento e finanças, administração de recursos materiais) a gestão da Lumiar está nas mãos de um corpo diretivo e de funcionários técnicos e administrativos contratados para esse fim.

Transcrito em Salto, 20 de Setembro de 2007 (texto elaborado de Maio a Agosto de 2007)

Críticas à Escola Tradicional

A tese de que a escola tradicional ou é irrelevante para a educação das crianças, ou até mesmo nociva para o desenvolvimento delas, tem nobres antecedentes. Famosos luminares do século XIX a defenderam: Leo Tolstói, Samuel Butler, Charles Darwin e Mark Twain. No século XIX, Albert Einstein e Karl Popper, e Howard Gardner, entre outros, consideram a escola tradicional, mais do que obsoleta e irrelevante, nociva.

Eis o que disse Leo Tolstói:

“As crianças, em todos os lugares do mundo, são obrigadas, pela força, a freqüentar a escola. Na verdade, os pais são obrigados a enviar seus filhos à escola, seja pela severidade da lei, seja porque se lhes prometem vantagens, seja por uma retórica que os ludibria. Fora da escola, as pessoas, em geral, em todos os lugares do mundo, aprendem e estudam por vontade e iniciativa própria e consideram a educação como algo bom. Como é que isso se dá? A necessidade da educação é sentida por todos os homens. As pessoas adoram aprender, amam a educação e a buscam, da mesma forma que amam e buscam o ar que respiram. O governo e a sociedade têm enorme desejo de educar o povo. E, todavia, a despeito do uso da força, da persistência do governo e da sociedade, e de todas tentativas de ludibriar o povo a aceitar a importância da escola, as pessoas do povo constantemente manifestam insatisfação com a educação que lhes é fornecida na escola e só se submetem a ela pela força, quando a escolarização é tornada obrigatória. É possível provar a justeza do método atual de escolaridade compulsória? É difícil descobrir se há métodos melhores, porque até aqui as escolas nunca foram realmente livres. É verdade que no nível mais alto do processo de escolarização – a universidade – se tenta implantar um regime mais livre. Será que, talvez, nos níveis inferiores a escolarização deva ser realmente obrigatória? Será que, talvez, a experiência um dia ainda nos vá provar que escolas de freqüência compulsória são boas? Vamos examinar essas escolas, não pela consulta às tabelas estatísticas que nos são fornecidas, mas tentando descobrir o que elas realmente são e fazem e qual o seu real impacto sobre as crianças do povo. Quando voltamos nosso olhar para as escolas de freqüência obrigatória, é isto que a realidade nos mostra: as escolas se apresentam às crianças como uma instituição destinada a torturá-las – uma instituição em que elas são privadas de seu principal prazer e necessidade: a movimentação livre; em que obediência e silêncio são exigidos como condição de permanência; em que elas precisam de autorização especial para ‘sair um minutinho’ da sala de aula; em que qualquer ação errada é de pronto punida. Quanto aos resultados da ação da escola sobre as crianças do povo, se atentarmos para a realidade e não para as tabelas estatísticas, somos forçados a concluir: nove décimos da população escolar retiram da escola apenas um conhecimento mecânico da leitura e da escrita; por outro lado, saem da escola com uma aversão tão grande para com os caminhos do conhecimento que foram obrigados a trilhar que nunca mais na vida botam as mãos em um livro. A escola não apenas consegue inculcar nos alunos a aversão para com a educação, ela também os induz a praticar a hipocrisia e a trapaça, em decorrência da posição não-natural em que os coloca. A educação deve ser apenas uma busca de resposta às questões que a vida nos coloca. Mas a escola não só não permite que os alunos ali levantem questões que lhes interessam como se nega a tentar ajudar os alunos a responder as questões que a vida fora da escola os força a confrontar. Ela fica eternamente respondendo às mesmas questões – mas essas são questões que não são levantadas pela mente das crianças. Basta olhar para uma mesma criança, de um lado, em casa e na rua, e, de outro lado, na escola. Em casa e na rua você observa uma criança vivaz, curiosa, com um sorriso nos lábios, explorando e tentando aprender tudo, da mesma forma que explora e busca prazeres, expressando seus pensamentos em suas próprias palavras, com clareza e, freqüentemente, com força e eloqüência. Na escola, você observa um ser como que aposentado da vida, cansado e com uma expressão de fatiga, tédio, enfado e por vezes terror, repetindo palavras estranhas em uma língua estranha – um ser cuja alma, como num caracol, se esconde dentro da própria casa. Basta comparar essas duas condições em que podemos observar a criança para constatar, sem sombre de dúvida, qual delas é mais vantajosa para o seu desenvolvimento. A natureza compulsória da freqüência à escola impede que a criança ali se eduque.”

[Leo Tolstoi, “Sobre Educação Popular”, em Artigos Pedagógicos, 1862, traduzido do Russo para o Inglês por Leo Wiener (Dana Estes & Co., Boston, 1904), passagens retiradas das pp. 7-18 (ênfases acrescentadas). Citado apud Daniel Greenberg, Announcing a New School: A Personal Account of the Beginnings of the Sudbury Valley School (The Sudbury Valley School Press, Framingham, MA, 1973, p. 175)]


Eis o que disse Samuel Butler:

“Fico às vezes imaginando como é que o mal causado pela escola às crianças e jovens não deixa, a maior parte das vezes, marcas mais claramente perceptíveis, e como é que moços e moças conseguem crescer tão sensatos e bons, a despeito das deliberadas tentativas feitas pela escola de entortar ou mesmo interromper o seu desenvolvimento. Alguns, sem dúvida, sofrem danos de tal monta que sentem seus efeitos até o fim da vida. Mas muitos parecem não se deixar afetar pela vida da escola e uns poucos até se saem bem. A razão disso me parece ser que o instinto natural dos jovens se rebela de forma tão absoluta contra a formação que recebem na escola que, não importa o que possam fazer os professores, nunca conseguem que seus alunos os levem suficientemente a sério”.

[Samuel Butler, em Erewhon, passagem citada por Karl Popper como moto de uma seção de “Replies to My Critics”, in The Philosophy of Karl Popper, org. por Paul Arthur Schilpp (Open Court, La Salle, IL, 1974), Vol. II, p. 1174 (ênfase acrescentada)]


Charles Darwin
também fez comentários pouco lisonjeiros sobre sua educação escolar. Eis o que disse Darwin sobre um dos cursos que fez:

“Durante meu segundo ano em Edimburgo, freqüentei as aulas de Jameson sobre Geologia e Zoologia, mas elas eram incrivelmente enfadonhas. O único efeito que tiveram em mim foi a decisão de jamais ler um livro de Geologia em toda a minha vida, ou de estudar essa ciência de alguma forma”.

[Apud Dean Keith Simonton, A Origem do Gênio: Perspectivas Darwinianas sobre a Criatividade (Editora Record, Rio de Janeiro e São Paulo, 2002), tradução brasileira de Carlos Humberto Pimentel D. da Fonseca e Luiz Guilherme B. Chaves do original em Inglês Origins of Genius: Darwinian Perspectives on Creativity (Oxford University Press, Oxford, 1999), pp. 167-168, que por sua vez a retirou de F. Darwin, org., The Autobiography of Charles Darwin and Selected Letters (Dover, New York, 1958, originalmente publicado em 1892), p. 15]


Mark Twain, com o seu costumeiro e mordaz senso de humor, disse:

Jamais permiti que minhas atividades escolares interferissem na minha educação“.

[Apud Dean Keith Simonton, op.cit., p. 170, que, por sua vez, a retirou de C. T. Harnsberger, org., Everyone’s Mark Twain (Barnes, New York, 1972), p. 553 (ênfase acrescentada)]


Já no século XX, Albert Einstein foi ainda mais mordaz:

Na verdade, não passa de um milagre que os métodos modernos de instrução ainda não tenham estrangulado por completo a santa curiosidade da investigação; porque esta plantinha delicada, longe do estímulo, fica necessitando principalmente de liberdade; sem isso, ela vai por água abaixo, com certeza. É um erro muito grave pensar que o prazer de ver e procurar pode ser promovido por meio de coação e do sentido do dever”.

[Apud Dean Keith Simonton, op.cit., p. 167, que, por sua vez, a retirou de P. A. Schilpp, org., Albert Einsten: Philosopher-Scientist (Harper, New York, 1951), p. 17 (ênfase acrescentada)]


Eis o que diz Karl Popper, um dos maiores filósofos do século XX, se não o maior:

“Tem-se dito, e com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela decência, de sua originalidade, de sua teimosia e de sua saúde, do que o fato de que esse devastador sistema educacional não tenha até hoje sido capaz de arruiná-la completamente“.

[The Open Society and Its Enemies, Vol. I: “The Spell of Plato” [Princeton University Press, Princeton, NJ, 1962, 1966, 1971], p. 136 (ênfase acrescentada)]


Eis o que diz Howard Gardner, o eminente professor de Harvard, criador do conceito de “múltiplas inteligências”:

“Freqüentar a maioria das escolas de hoje realmente traz o risco de prejudicar as crianças. Seja qual for o significado que a instrução possa ter tido no passado, para a maioria das crianças de nossa sociedade ela já não tem nenhum significado. A maioria dos alunos (e, por falar nisso, a maioria dos pais e professores) não é capaz de dar razões realmente convincentes para freqüentar a escola. As razões não podem ser discernidas na própria experiência escolar, nem as pessoas acreditam que aquilo que se aprende na escola será realmente utilizado no futuro. Tentem justificar a equação quadrática ou as guerras napoleônicas para um aluno de ensino médio de uma cidade do interior – ou para seus pais. O mundo real aparece em outro lugar: nos meios de comunicação, no mercado de trabalho, e com excessiva freqüência no submundo das drogas, violência e crime. Muito, se não a maior parte, do que acontece nas escolas acontece porque é assim que acontecia nas gerações anteriores, não porque nós tenhamos bases lógicas convincentes para mantê-lo hoje. A afirmação muito comum de que a escola é basicamente um lugar de custódia em vez de educação contém um traço de verdade”.

[Howard Gardner, Inteligências Múltiplas: A Teoria na Prática (Artes Médicas, Porto Alegre, 1995), tradução brasileira de Maria Adriana Veríssimo Veronese do original em Inglês Multiple Intelligences: The Theory in Practice (New York, Basic Books, 1993), p. 171. (Fiz pequenos ajustes na tradução, para melhorar a sua qualidade)]

Em Salto, 20 de Setembro de 2007

Pequena Escola de Liberdade

Transcrevo a seguir o capítulo 18 do livro “Você Está Louco!” de Ricardo Semler, a pessoa que concebeu, criou e até hoje mantém a Lumiar. O capítulo tem o título do artigo aqui no blog/site.

—–

– Espere você ter filho, me diziam, quando eu falava sobre minha “filosofia da educação”.

Tive filho e o eduquei segundo minha filosofia. A frase virou: “Ah, bom, mas ele é especial, não conta”. Acho que terei que produzir uma dezena de filhos, todos com mães diferentes, em países distintos, para provar que minha tese tem fundamento. Mesmo assim, como ocorre ainda hoje com a Semco, haverá pessoas que dirão “ah, mas vá fabricar freezers na Sibéria com pigmeus do Benin para ver o que é bom”.

Foi assim quando lancei meu último livro em inglês e os editores queriam pagar U$$ 1.000 pelos direitos em japonês. “O Japão é o contrário de tudo que você pensa, viu como o primeiro livro vendeu pouco lá. É só para constar, você vai achar graça em ter uma cópia em japonês para mostrar para os netos.” Uma semana depois de lançado, em 2006, estava em segundo lugar como bestseller no Japão, perdendo apenas para o novo Harry Potter.

Aprendi a ser persistente, a esperar os verdadeiros resultados, ao invés de contar com o “bom senso” das pessoas e da sabedoria popular. Afinal, o bom senso é necessariamente o senso comum, e o senso comum é, por definição, não-inovador.

Isso ficava evidente quando eu percebia como a escola do senso comum entregava à Semco adultos totalmente condicionados. E, como Orwell previu, condicionados a serem submissos, a esperarem instruções, a se submeterem à uniformização. Depois de passar mais de duas décadas tendo de desprogramar no trabalho o que lhes foi transmitido desde o jardim de infância, resolvemos mudar o sistema no momento certo: o jardim de infância.

Assim nasceu o projeto Lumiar da Fundação Semco, presidida por Caio Túlio Costa. Quando comecei a Fundação há 15 anos, com o dinheiro da venda do Virando e das palestras, resolvi focar nos talentos brasileiros que não teriam financiamento e que provavelmente veriam seu potencial desperdiçado.

Passamos anos trabalhando com escolas, entidades, governo e associações que incentivavam talentos especiais, e até superdotados. Tivemos casos bonitos, mas, no frigir dos ovos, fracassamos. Procurávamos crianças que se destacavam pela inteligência, o que, com freqüência, é ruim para elas próprias. Afinal, uma criança que tem a mente especialmente direcionada à matemática morre de tédio nas aulinhas bobas, e se desliga – muitas vezes evadindo-se, ou nem sequer passando nos exames.

Talento vem, portanto, em todos os formatos. Para ser recepcionista ou vigia, atendente ou triangulista profissional (sou fissurado em triangulista, o músico que mais me intriga – espera, espera, e bate naquele instrumento uma única vez!). A Fundação procurou, e achou esses casos interessantes, mas percebeu que tarefa muito mais gratificante seria conceber um conceito de escola que não expelisse ninguém, dos mais talentosos aos que menos demonstram vocação.

Era preciso bolar uma nova arquitetura de aprendizado. Ficamos intrigados com isso, e saímos à cata de exemplos, para entender o estado da arte do ramo. Comecei a marcar almoços com ex-secretários e ministros da Educação, professores, filósofos. Conseguia reunir uma dezena deles para cada conversa, a questão era caliente. Aos poucos, fui percebendo que, assim como ocorria no mundo das empresas, havia um pensamento monolítico. Que não convencia, tinha defeitos gritantes, mas que as pessoas do ramo consideravam o possível.

Inconformado com a pobreza desse conformismo, comecei a ler as bíblias do ramo. Freinet, Vygotsky, Piaget, Engestrom, Montessori e Dewey habitavam a mesinha de cabeceira. Fui tentando formatar um conceito na minha cabeça. Estava claro que a magia do aprendizado que habitava a cabeça dos pensadores não encontrava reflexo na realidade das escolas.

Como acontece no mundo das empresas, onde gurus de management desfilam exemplos saltitantes de empresas com funcionários apaixonados, radiantes e lucrativos – raramente encontrados no mundo real – os educadores viam crianças que aprendiam com amor, apoio e interesse dos pais – que também mal existiam. Da mesma forma que o pensamento teórico empresarial me parecia absurdo, as teorias pedagógicas careciam de substância e, sobretudo, de versão real.

Formulei então minha teoria das caixinhas. No mundo adulto, a idéia é deixar a vida pessoal para trás, sair de uma caixinha (apartamento) pela manhã, entrar em outra, sobre rodas (ônibus, metrô ou carro) e chegar em outra maior (escritórios ou fábricas sem vista para fora), para ficar o dia inteiro, e voltar via caixa-sobre-rodas para a caixa-mãe. Lá, é sentar na frente da caixinha-com-tela ou daquela caixa-com-Internet, depois cair desacordado por sobre uma caixa-com-colchão. No dia seguinte, transitar novamente entre caixinhas. Que vida!

Na infância, a mãe deixa a criança na porta da escola, muitas vezes contra a vontade da bichinha, para ser “cuidada” e educada por terceiros. Uma caixinha da qual ela não pode sair, na qual ela é empilhada com outras 20 crianças, sem poder sair para o pátio (outra caixinha, aliás, da qual ela também não pode sair).

Se isso for treinamento para uma vida insossa em caixinhas claustrofóbicas, é realmente um sistema exemplar. Se for para ensinar à criança que a vida é cruel, que nunca é possível fazer o que se quer, que mais tarde tudo será assim – cinzento, duro e repetitivo -, então o sistema educacional é um sucesso. Prepara, de fato, a criança para o miserável mercado de trabalho que os pais míopes acham que será igual daqui a 15 anos, quando suas crianças virarem jovens adultos prontos para brigar, competir, atropelar e acotovelar, para serem capazes de comprar caixinhas maiores para morar, caixinhas mais rápidas para dirigir e caixinhas de canto no escritório para trabalhar. Onde pessoas dentro de caixinhas de organograma mandam em caixinhas de cronogramas. Ora…

O que está no âmago do que os pais procuram na educação? Afinal, as crianças são papéis em branco, prontas como esponjas para serem inculcadas com conhecimento e práticas sociais? São matéria-prima para o difuso rei-pagão, o mercado de trabalho? Devem ser sacrificadas no altar do emprego, para então serem declaradas sucesso ou fracasso, dependendo de quanto subirem na hierarquia das caixinhas?

Se remontarmos à origem antropológica, é patente que a educação serve para desenvolver as possibilidades da criança e expô-la ao contexto, para que ela possa superar rituais de passagem e se transformar num membro completo e autônomo da tribo.

O nosso ritual de passagem ocorre aos 18 anos, quando uma criança ganha autonomia jurídica e é vista como tendo encerrado o ciclo em que deveria ser tutelada pelos pais e pela escola. Nesse meio tempo, sua educação é terceirizada pelos pais para a escola. Pais podem ir lá de vez em quando para reuniões, mas, efetivamente, não mandam nada. Quem manda é o Estado, ou a instituição de ensino que é especializada em seu filho, instituições essas não muito chegadas a aceitar palpites.

Quando me reúno com professores costumo perguntar a razão da estrutura das férias na escola: por que três ou mais meses de férias por ano, e agrupadas? Afinal, que criança precisa de dois meses seguidos para se recuperar do ritmo escolar? E que nexo tem um sistema de férias que sujeita a criança a um estresse intenso, seguido de tempo livre em demasia?

As pessoas do ramo respondem com questões adultas, e mencionam clima, calor, tempo de planejamento da escola. Não é a explicação, que vem a ser bem mais simples: as férias são historicamente assim porque no âmbito rural – a origem da escola que conhecemos – as crianças eram necessárias para ajudar na colheita.

E o que colhem, hoje? Depois de duas semanas de férias, temos urgentemente de achar atividades para os pequenos. Toca colônia de férias, viagens estressantes com filas para lugares abarrotados. Oras, bolas, que sistema mal pensado.

O mesmo é verdade em relação ao currículo, concebido expressamente para os adultos. As disciplinas seguem a compartimentalização industrial: departamentos, disciplinas, onde cada um se foca nas suas especialidades, fazendo discretos esforços para criar referências laterais.

Colombo e a Dinastia Ming

É assim na escola, resultando em três horas por dia de lição de casa maçante e disciplinas que não dialogam entre si. Em biologia, estudam-se sapos dilacerados enquanto em química pensa-se em hidrogênio expandido, sai-se correndo para ler Machado de Assis e entregar a lição sobre Átila, o Huno. Haja paciência. E capacidade hercúlea para juntar os pontinhos.

De fato, nunca se juntam. Pergunto aos professores o que acontecia no Ocidente durante a famosa dinastia Ming, e todos fazem cara de pequinês diante de um lobo guará. Ora, Cristóvão Colombo foi contemporâneo da dinastia Ming, quem diria.

Pergunto sobre Gregor Mendel. Onde podemos encaixá-lo: como importante agostiniano, ou precursor da teoria dos jogos, ou da probabilística, ou como pai da genética? Talvez, ao invés de inseri-lo na matemática, biologia ou história religiosa, devesse colocá-lo em culinária, capítulo das ervilhas.

O mesmo com Leonardo da Vinci, que conviveu com a teoria das proporções antes de Mendel, mas também foi estudioso da aviação, dissecava cadáveres escondido e achava tempo para pintar afrescos e a risonha Mona Lisa.

Dividir disciplinas em áreas estanques leva, necessariamente, ao esquartejamento da sabedoria e da magia da referência cruzada. O resultado a Universidade de Chicago mediu: a gente retém apenas 6,33% do que nos foi ensinado. Ora, quem quer desenhar um sistema de educação que tenha uns 93% de perda total? O que poderia ser mais ineficaz e estúpido?

O argumento que se segue é que a escola ensina as crianças a aprenderem a aprender. Ora, que bobagem. É só assistir a um nenê. Aprende a negociar depois de alguns meses. Com quem? A mãe dá aula de negociação?

Depois de nove meses de vida, o bichinho começa a engatinhar. Somos nós que ficamos de quatro à frente, demonstrando como se faz? Depois de um pouco, começam, cambaleantes, a andar. Quem os ensina a aprender a aprender a andar? No fim dessa fase, começam a falar! Se nós achamos tão difícil aprender uma segunda língua, o que se dirá de aprender a falar do zero, para alguém que nunca falou? Somos nós, com ma-má, pa-pá e outras ingenuidades tolas que os ensinamos?

Crianças vêm de fábrica com a habilidade de aprender a aprender. Ou foi você que ensinou seu filho ou sobrinha a dominar teclas obscuras de videogames – que nem leituras demoradas do manual ensinam e que os pequenos entendem de imediato?

Lembro de um jogo do Harry Potter, em que eu, com ar sábio, me propus a achar a saída de um labirinto para meu filho, quando ele tinha quatro anos.

– Aqui, veja, meu filho, eu entoava com ar de mestre, enquanto corria com o famigerado Harry por todas as salas.

Depois de 12 minutos, concluí que o jogo estava com defeito, e estava pronto para devolver à loja com bilhete raivoso.

– Empresta aqui, papai.

– Hmmm…

Ele desatou a bater com o Harry de frente numa parede. Eu, complacente, esperava que ele desistisse. Ele, porém, persistia, esmurrando a muralha, e eu alertando-o que isso não fazia muito sentido.

Depois de umas 30 pancadas, em que eu já estava com o rosto dolorido em nome do pobre Harry, a parede abriu-se e a Fase II foi conquistada. Meu filho havia associado o jogo ao filme, onde Potter entra correndo por uma parede na estação de trem, e pronto – sua persistência me salvou de uma interlocução vexatória com o vendedor da loja.

Aprender a aprender? Ora, poupe-me. Na escola, porém, achamos que os 93% de informação inútil irão desenvolver a capacidade de aprendizado. É só ver o ciclo de entusiasmo de crianças para ver que não é isso que ocorre.

Ao contrário. O ciclo se inicia com uma criança que não desiste de aprender a andar. Cai, chora um pouco, ri, começa de novo. Depois, de novo e de novo, caindo, levantando, rindo e choramingando. E nós achamos que temos de ensinar as crianças a serem determinadas, disciplinadas.

Ouço que as crianças têm um ciclo de atenção (attention span) cada vez menor. Os estudos demonstraram que, há cerca de 100 anos, as crianças conseguiam prestar atenção a uma aula durante 50 minutos. Esse estudo, refeito há poucos anos, mostrou que esse tempo caiu para oito minutos, e culpam-se a televisão, a Internet e o mundo de distrações.

Testem isso. Dê a uma criança um jogo de videogame novo ou deixem um adolescente conversar ao telefone ou num blog. Depois de três horas lá estarão, na mesma posição, profundamente entretidos. Cadê os oito minutos de concentração máxima? Eles dão oito minutos para assuntos e professores chatos, isso sim.

Certa vez fui a um congresso de educadores e lhes disse duas coisas que me deixaram com um terço de público a menos. Primeiro, que estavam fazendo de reféns adolescentes de 15 a 18 anos, somente porque tínhamos decidido – como tribo – que eles não podem dirigir e sair de casa antes dos 18. E que o aprendizado naquela fase era irrisório, e que adolescentes tinham coisas mais importantes para aprender.

Para mantê-los dentro das caixinhas-de-aula, com caixinhas-curriculares, forma-se um ambiente de Febem. Eu disse àquele público, que saía aos poucos indignado, que se eu fosse um adolescente na escola deles estaria interessado em drogas, sexo e rock’n’roll. Se insistissem em me manter numa dieta de Aristóteles, física quântica e trigonometria, teriam de colocar arame farpado por cima dos muros, e confiscar a arma que eu gostaria, verdadeiramente, de levar para a escola.

Desafio alguém a achar diferenças importantes, olhando de fora do muro, entre escolas e reformatórios. Dentro, as crianças são encarceradas. Óbvio.

Blog versus Pi

Muitos pais e educadores insistem na tese – sem fundamento – de que a fase adolescente se compõe de hormônios enlouquecidos, transformações de corpo e de cabeça inadministráveis, necessidade de lutar contra o mundo adulto, encontrar seu próprio ser e blá-blá-blá. Ora, isso dura a vida toda, e se pronuncia nos ciclos de afirmação dos 20, conservadorismo precoce dos 30, crise de meia-idade dos 40, susto dos 50, menopausa, medo da terceira-idade… até a incontinência das fraldas aos 90.

Quanto aos ciclos, Jung que o diga: os hormônios não deixam de se manifestar nunca. É só observar o fenômeno da TPM ou executivos que se separam para sair com modelos novinhas enquanto compram um conversível vermelho-sangue.

A ciência demonstra. Margaret Mead e estudos antropológicos de Yale indicam que os adolescentes tribais e de sociedades rurais mais primitivas não passam por essa famosa crise da aborrescência. Isso é, claramente, um fenômeno recente e urbano, condicionado. Não quer dizer que não haja mudanças hormonais – estas estão na cara (em forma de espinhas, até). Quer dizer que são apenas um ritual de passagem biológico e psicossomático – como tantos outros de antes e depois.

Nessa fase – e essa foi a segunda coisa que eu disse, causando mais algumas saídas abruptas de público -, o importante é deixá-los falarem em blogs e ao telefone. Não porque o outro aprendizado é ineficaz (apesar de ser), mas sim porque essa é a tônica educacional necessária. Quando um adolescente passa quatro horas ao telefone ao invés de fazer lição de casa ou sair no lindo sol, está estudando. Firme e profundamente. Estudando o quê, pergunta-se a pedagogia tradicional, naquele papo infindável ao telefone sobre namorados e nos blogs onde distorcem a gramática até que “naum sejamos kpzes de tender nda”?

Estão estudando aquilo que será o mais vital para a vida futura deles: sociologia. Estão aprendendo a ler as outras pessoas, a se encaixarem em tribos, a distinguirem entre amigos verdadeiros e passageiros, a diferenciarem rumores de fatos, encaixes provisórios de relações permanentes.

O que há de mais importante na vida? Teoremas de Pitágoras? Algum de nós sabe usar Pi, 3.1416 para alguma coisa? Sabe dizer para que serve o quatro debaixo do CO? Sabe a raiz quadrada de um número grande? Sabe dizer se foram os vikings ou os mongóis que passaram primeiro pela Rússia? E qual é exatamente a diferença entre uma sesmaria e uma capitania hereditária?

Pior é tentar cruzar essas informações esparsas e ganhar uma visão abrangente da vida. É quase impossível. Conseguimos tão somente inaugurar uma linha de montagem que processa crianças a caminho de um mercado de trabalho que começará com o pressuposto de que os recém-formados conhecem a submissão ao sistema, aceitam a uniformização e saberão seguir instruções.

Dali em diante, não há de se espantar com a curta vida das empresas, da baixa fidelidade ao emprego, às bobagens diuturnas que são cometidas em nome do manual e das regras.

Foi com base nessa constatação que redirecionamos os esforços da Fundação Semco para um modelo novo de escola. Saímos pelo mundo à cata de espécimes para estudo – escolas, não bichinhos vivos chamados alunos. A primeira escala foi a Inglaterra.

Lumiar: Democracia com Conteúdo

O Andrew Neill foi um cara folclórico e batuta. Desistindo de ser um professor da rede pública na Escócia, resolveu começar uma pequena escola própria, no sul da Inglaterra. Neill era um iconoclasta, afetado pela barbárie pedagógica que havia vivido.

Fundou a lendária Summerhill com alguns poucos meninos, quase todos advindos de experiências problemáticas. Desde o início, teve de se especializar em crianças-problema, cuja vida familiar ou histórico psicossocial havia levado à rebeldia ou expulsão do sistema.

Isso mudou mais tarde, mas sempre um contingente de crianças que não haviam dado certo no sistema tradicional fazia parte do corpo discente, o que acabou por macular de vez a teoria da Summerhill.

Por outro lado, nos anos 60 a escola viveu o seu apogeu, e influenciou escolas mundo afora. Nunca foi grande, teve sempre menos de 100 alunos em seu casarão de Suffolk, onde crianças faziam as suas próprias regras e iam à aula quando queriam. Não demorou para que a escola fosse considerada anárquica pelo establishment. Houve incontáveis tentativas de fechar a escola, a última delas há poucos anos – afetando as poucas dezenas de alunos que lá estudam hoje, sob direção da filha do fundador, Zöe Neill. Por enquanto está lá, firme. Mas pequena, e com influência decrescente desde os anos 80 – a maioria das pessoas acha que a escola não deu certo ou pensam que já fechou. Por isso fui lá visitar.

Gostei de várias coisas que vi, e preocupei-me com outras. A quantidade de crianças que estava em aula não era pequena, mas claramente o ar era bastante alternativo. Zöe sempre muito preocupada e com o encargo de tentar preencher os grandes sapatos do pai, que deixaram pegadas bastante visíveis na educação do século XX.

Lembro-me de um episódio do livro original, no qual um dos meninos vem dizer ao Neill que pretende quebrar alguns vidros da escola com pedras. Neill concorda e pergunta se quer que ele o ajude. Saem os dois juntos para quebrar vidraças. Depois de alguns minutos, Neill volta e senta com o garoto e pergunta: “Agora, como vamos fazer para pagar? Tiro um pouco do meu salário e um tanto da sua mesada?”. O menino concorda, e usam o dinheiro para comprar novos vidros e recolocá-los.

Deixou claro para mim que pensamos de forma muito estreita sobre o educar. Colocamos pressupostos morais, éticos e de conformidade social duvidosos – tanto que não queremos parar demais para repensá-los.

Apesar de minha empatia com o incrível Neill, não achei em Summerhill um modelo que pudesse ser seguido. Hoje, quando ouço pessoas comparando a Lumiar à Summerhill, vejo que conhecem pouco sobre filosofia da educação.

De Summerhill, fui a inúmeras escolas, como Dartington Hall e às progressive schools inglesas, às maternidades francesas e italianas da linha Montessoriana, e fui parar nos EUA. Lá, vi de perto as escolas Sudbury, que representam a versão contemporânea da Summerhill. Participei de encontros da associação de escolas democráticas, fui a muitas charter schools (as escolas públicas que são assumidas por cooperativas, empresas ou comunidades), e visitei o que havia de mais moderno, como a Ross School nos Hamptons, em Nova York, e a Denver School Cooperative, no Colorado.

Fui conversar com o grande Howard Gardner, referência obrigatória no ramo, decano da Harvard Graduate School of Education, e parceiro do grande David Perkins. Juntos, abriram as portas da escola contemporânea. Gardner, com sua tese paradigmática sobre inteligências múltiplas – onde deixa claro que QI é medidor pobre e pouco útil -, e Perkins com sua turma de estudiosos sobre metodologias de ponta em escolas.

– Mais cedo ou mais tarde tudo que é novo em educação vem parar nessa mesa, disse Gardner, sem arrogância.

Nas muitas vezes em que ficamos horas a fio discutindo a Lumiar, Gardner parava, olhava para o alto, refletia, e dizia: “Isso que você está propondo é novo, não conheço isso em lugar algum, ninguém vai poder ajudá-lo”. Intrigou-se e propôs que Perkins ficasse no nosso conselho internacional da escola e ele acompanhasse a experiência, como fez, visitando inclusive a escola em São Paulo e almoçando comigo a cada tanto em Cambridge, os dois coçando a cabeça.

Ficou claro que as escolas se dividem em duas grandes categorias. As clássicas, com despejo de matérias em cima do pobre aluno, com pais achando que é assim mesmo, “crianças têm de ter uma educação forte” e ver que o mundo é cruel, desde cedo. Essas têm lição de casa de monte, estresse, preocupação doentia com disciplina, e para os pais capital social e networking são tão importantes quanto conteúdo. Países inteiros, como a Inglaterra, Alemanha, Japão, China, Índia e EUA enquadram-se nessa categoria.

Um segundo grupo se compõe de cooperativas, escolas alternativas ou mais light, métodos montessorianos ou construtivistas, e muito mais preocupação com a saúde emocional das crianças, com envolvimento maior dos pais. Países como os escandinavos, ou a Holanda, bem como parte da Itália e Austrália, têm bons exemplos dessa categoria, e o Brasil tem algumas centenas de escolas que seguem essa, por assim dizer, cartilha.

Afora isso, há as “esquisitas”. Umas 300 dessas mundo afora são as escolas democráticas, onde a liberdade da criança e o exercício de uma cidadania democrática são mais importantes do que conteúdo. O pressuposto é que a criança procurará o que quer aprender, pois não aprende, de qualquer forma, o que não lhe interessa. Assim, a liberdade de ir à aula ou não, e de formatar o próprio currículo, é primazia nestas instituições.

Summerhill e Sudbury estão nessa categoria. Na Sudbury, a idéia de ter aula, mesmo, é considerada tabu. As crianças devem procurar o que lhes interessa aprender, e os adultos da casa ajudarão. De resto, a escola e sua disciplina são geridas pelas crianças.

A Lumiar é uma variante, que não encontra um paradigma, apesar de buscar nessas várias fontes sua inspiração. A idéia de jogar conteúdo e disciplina em cima das crianças, esperando que elas o regurgitem de volta nas provas é inaceitável, além de pouco inteligente. O raciocínio montessoriano e construtivista também cai rapidamente em um formato padrão, o de projetos. E o sistema democrático tem beleza na formação de cidadãos livres, mas não se preocupa em nada com a aferição de aprendizado do conteúdo. Apesar de formar jovens bastante preparados para a vida e para todas as profissões, como se atesta facilmente examinando a história dos milhares de formandos dessas escolas democráticas, elas não me convencem como modelo. Porque, também, jogam o pêndulo para um só lado, como se democracia fosse a meta final. Não vejo assim. Como na Semco, a democracia ou liberdade individual é um instrumento, não um valor em si. Ou seja, aprendendo a lidar com democracia e liberdade, a criança tem a chance especial de se jogar na magia do aprendizado social, emocional, mas também de conteúdos. E essa última parte é deficiente nas escolas democráticas.

Além do Perkins como membro do nosso conselho, junto com outros luminares da educação mundo afora, formamos também um conselho nacional, reunindo 26 dos maiores nomes da educação, filosofia e sociologia do Brasil – incluindo dois ex-ministros da Educação, Paulo Renato e Cristóvam Buarque, e um secretário da educação, Fernando de Almeida, que virou presidente do Instituto Lumiar.

Não queria, de maneira alguma, usar crianças como cobaias de um novo método. Queria ter ao meu lado os grandes especialistas do ramo. Formamos um grupo de mais de 20 pessoas que passaram a se reunir uma vez por semana, à noite, durante dois anos.

Havíamos decidido que não abriríamos a escola antes de termos clareza quanto ao nosso modelo e seus riscos. Foram dois anos de intenso debate, às vezes até de embates fortes. Mas o objetivo final unia o grupo: bolar uma saída para a triste condição da escola, especialmente a brasileira. Afinal, quase 98% das crianças do país estavam agora na escola. Mais ainda faltava um modelo viável, e, claro, faltava qualidade. E nós queríamos ajudar a contaminar positivamente o sistema público, começando com escolas próprias.

O Anti-Método Lumiar

Os pilares da Lumiar são singelos e igualmente importantes: liberdade, cidadania e aprendizado profundo. Fácil de escrever. O primeiro, liberdade, parte de um pressuposto: de que aprendizado com valor residual só acontece quando há, de um lado, uma criança ou pessoa efetivamente interessada naquilo naquela hora e, de outro, alguém que esteja ensinando a partir de um conhecimento profundo e, especialmente, apaixonado.

Cidadania, palavra-clichê, quer nesse caso dizer que ninguém consegue ser brasileiro (nem cidadão do mundo) sem ter convivido com a questão das diferenças. Quando visitava favelas com políticos do PSDB e via o contrangimento com que seguravam pastéis de carne nos botecos, percebi que a compreensão das diferenças não se dá meramente com vontade intelectual, nem com convivência tardia. Requer convivência, quase simbiose, desde cedo. Crianças que convivem lado a lado e trocam vivência todo dia com milionárias e humildes, com síndrome de Down, com cores diferentes de pele e línguas maternas distintas – estas sim, com o passar dos muitos anos, saberão comer pastel em muquifos ou sentar à mesma mesa que os ricaços sem complexo de inferioridade.

O último pilar é o do conhecimento – onde se tenta transmitir às crianças a sabedoria acumulada da humanidade. Afinal, não é razoável esperar que uma criança reinvente todas as rodas da história do conhecimento. É factível imaginar que uma criança que repouse sob uma macieira reinvente a teoria da gravidade quando uma maçã lhe cair na cabeça? Ou que sorva uma sopa de ervilhas e lhe ocorra teorias de genética?

Ficamos, pois, duas dezenas de educadores e apaixonados, por quase três anos nos reunindo em salas abarrotadas, quentes e com quadros brancos lotados de siglas, referência e teorias. Ao final desta maratona, chegamos a um momento onde todos concordavam que poderíamos adicionar alguns bichinhos mornos à nossa experiência, sem que tivessem de ser hamsters: estava na hora de abrir uma escolinha. Corria o ano de 2003…

Tínhamos chegado a um formato seguro e de baixo risco que atendia aos três pilares. Primeiro, ressuscitamos a figura do tutor. Na Grécia, era o escravo que levava os filhos dos ricos para o gymnasium, para receber aulas de educação física, e aprender com os vários sábios. Afinal, a idéia de trocar completamente os professores de uma turma, sem que haja qualquer continuidade, é fruto da revolução industrial.

Passado o iluminismo, ficou apenas o cérebro a ser desenvolvido – a vida emocional, afetiva e o cuidado com o corpo só agora começam a ser revalorizados. Pós-revolução industrial, o importante era fazer transitar massas de crianças pela escola, para alimentar o dragão do mercado de trabalho. Assim, emulou-se a linha de montagem nas escolas, com carteiras fixas, professor para 20 ou 30 alunos, estrutura modular de 55 minutos e disciplinas verticalmente construídas.

Com nosso tutor, chamado de educador, seria diferente. Ele teria apenas uns 15 alunos sob sua tutela e seria o âncora dessas crianças – mas não somente por um ano ou dois. Se possível, dos dois aos 17 anos. Ou seja, conheceria tudo sobre essas crianças e seria capaz de mapear com elas os melhores momentos para cada aprendizado. Saberia de questões emocionais, familiares, afetivas, de facilidade e dificuldade de cognição. Além de confidente, saberia escolher o melhor momento para insistir na matemática ou em teorias biológicas.

Para garantir outro dos pilares, os conteúdos seriam terceirizados. Para um mestre. O mestre viria uma ou mais vezes à escola por semana e teria duas características: seria um/a expert em alguma área e teria, necessariamente, de demonstrar um brilho nos olhos quando falasse de seu interesse. Paixão seria condição sine qua non.

O tutor alinhavaria com a criança e seus pais um contrato trimestral, onde alinhariam o parâmetro de conteúdos do MEC, o momento da criança e a expectativa dos pais. No final do trimestre, fariam uma avaliação de 360 graus, onde a criança avaliaria a escola, o educador, os mestres e mesmo os pais enquanto educadores, e os pais fariam o mesmo. E, claro, o tutor também mediria o aprendizado e a contribuição dos pais. Dessa rica discussão nasceria o contrato do trimestre seguinte. E assim por diante, dos dois (contribuição menor, mas importante da criança), até a criança estar pronta para sair pela vida, emancipada em todos os sentidos.

Nunca deixamos de nos espantar, na escola, como os pais dos pequeninos de dois anos perguntam primeiro sobre as instalações e, rapidamente, em segundo lugar, como lidaremos com o vestibular! Querem saber qual será o método espartano que garantirá, daí a 15 anos, a entrada de seu filho na medicina da USP. Que costuma ser a profissão que o pai queria ter seguido, por exemplo. Ninguém pergunta a respeito do formato que garantirá felicidade e cidadania, apenas o que fará a criança passar num teste problemático.

O aprendizado profundo, um pilar da Lumiar, é ditado por algo que chamamos de mosaico. É um complexo sistema que mapeia e depois registra tudo o que a criança aprendeu. Aprendeu, com A maiúsculo. Essa história de “passar matéria” é quase inútil. Testar em seguida, então, é pior ainda. Adoraria testar, um ano depois que uma matéria é “dada” numa escola “forte”, o conteúdo aprendido. Duvido que um terço das crianças passe na prova. Imagine nós, adultos, sendo testados sobre matérias que nos “deram” em história, matemática ou, digamos, educação moral e cívica!

O mosaico registra diariamente, de forma digital, o percurso de conhecimento da criança. Ao fim de cada aula com um mestre, a criança escreve algumas linhas sobre o que aprendeu e o mestre faz o mesmo sobre cada criança. Além disso, há um registro diário de tudo que ocorreu na escola, sejam brigas entre as crianças, passeios ou comentários. Ao invés de boletim, cada criança leva para casa um relatório do educador, que costuma ter 40 páginas de texto sobre o aluno (a-lumni, sem luz, usamos o termo educando, firulinha simbólica).

Isso, somado ao escaneamento dos trabalhos, desenhos e fotos das atividades, compõe o registro digital de cada criança. Lá, pais, crianças e escola têm acesso, com senhas diferentes, a pastas diferentes, a todo o mundo mágico de escola da criança (cada um pode preservar o sigilo daquilo que quiser).

Chama-se mosaico porque imaginamos a oferta de conteúdo escolar como se fossem peças, caquinhos, numa mesa. Ali estariam as, digamos, 600 áreas que gostaríamos, no mínimo, que as crianças da Lumiar conhecessem bem, ao longo dos 15 anos de vida escolar delas. Peças como arte moderna, formulação de hipóteses, méritos da pesquisa ou mesmo revolução industrial. Mas também caquinhos como habilidade de resolver conflitos (como se sair depois de uma briga com um colega), saber conviver com diversidade ou conceitos aparentemente simples como saber ler.

Matemática, Kung Fu e Circo

Numa escola tradicional, saber ler é decomposto em “saber inferir o autor real da frase” e “distinguir entre sujeito ativo e passivo”. Os medidores que usamos, Saeb (padrão para o fundamental) e também o PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC – descrevem o que é saber ler e como testar. Para nós, porém, tudo isso é pouco. Sim, medimos isso, por esses parâmetros. Mas o nosso saber ler quer dizer “gostar pacas de ler”. Queremos crianças que leiam montes de livros a vida toda, e isso é muito mais difícil.

Garantimos um aprendizado maior porque respeitamos a liberdade e auto-propulsão dessas crianças que souberam levantar, cambalear e depois andar sozinhas. Nosso sistema de alfabetização intriga os especialistas que nos visitam. Não tem o vovó-viu-a-uva, nem um sistema de whole language anglo-saxão, mas registra o menor índice de resistência que jamais mediram: zero.

Ou seja, como na Semco, retiramos os obstáculos, ao invés de impormos métodos. Temos várias crianças de três anos que lêem, como também algumas de oito que ainda brigam com a coisa. Nossa linha é de que “ler é bom”, mas não precisa, se você não quiser. Criança que não quer, num mundo lotado de linguagem escrita, tem outros problemas mais profundos – e queremos saber logo quais são. Todas as outras, 100% da Lumiar, se alfabetizam no tempo certo. Pais que se gabam de que o seu filho de cinco anos já sabe escrever um parágrafo estão lidando com seus próprios egos e não com o desenvolvimento do filho.

A Lumiar de São Paulo tem 170 mestres registrados, de carpinteiros a professores da Poli/USP, químicos e biólogos a artistas circenses. Em cada área, apaixonados. Nosso papel: juntar o interesse da criança com um apaixonado naquele conteúdo. E reinventar o aprendizado. Tome-se o exemplo de algo simples como educação física. A simples menção do termo dá urticária em pessoas com óculos grossos ou obesidade. A idéia de que um sargento tipo marine berre no seu ouvido enquanto você dá a trigésima terceira volta na quadra é a imbecilidade anacrônica que ainda impera – mesmo com variações que evitam a comparação direta.

Se o objetivo é conhecer melhor o funcionamento e possibilidades do corpo, por que não mestres circenses (que ensinam trapézio na Lumiar) ou mestres de artes marciais, como o Gil, que dá kung fu para a meninada ou até mesmo tai chi chuan? A mestre japonesa que dava essa “matéria” ficou dois meses na escola sem que um aluno sequer fosse à sua aula de tai chi. Concluiu que ninguém se interessaria. Ao se despedir das crianças não-alunas, pediram para ela esperar um pouco. Em seguida, fizeram uma apresentação de tai chi baseada no que tinham visto, escondidas durante aqueles meses, e ela ficou.

Vale para todas as outras matérias. Se queremos que uma criança aprenda frações, escrever “1/3” na lousa não é o caminho. Mas química e matemática na cozinha, que temos na Lumiar, pedem às crianças que separem “um terço desse açúcar”. Assim, aprendem frações de fato, como também química – quando entendem por que o fermento faz uma massa crescer.

O mosaico acompanha tudo isso. Passada a primeira camada de peças do mosaico, do que consideramos mínimo para uma criança se virar como cidadão, ela decide onde quer “perfurar” para achar mais. Debaixo de arte moderna, ela pode explorar Picasso, depois Braque ou Juan Gris e chegar a Hélio Oiticica. Levaremos essa uma criança a um museu, ao invés de excursões insensatas de 24 crianças que nem têm idéia de onde estiveram e têm de ser contidas para não colarem chiclete nas esculturas. As que não querem nem ouvir falar de cubismo podem querer saber mais sobre tatuagens, e ali acharemos aprendizado sobre cultura tribal, talvez a levando a pesquisar Papua, em Nova-Guiné?.

Com a ênfase no conteúdo efetivo podemos nos liberar da função anacrônica de manter disciplina. Delegamos isso para as crianças. Ninguém melhor do que elas para estabelecerem as regras. E elas, de fato, enchem a casa de regras. Depois sossegam. Mas não temos o papel de apontar dedos, dar gritos, segurar crianças pelos bíceps até que se dêem novamente as mãos. No lugar desses procedimentos, temos a roda.

Essa assembléia de garotada junta todos, uma ou mais vezes por semana ou quando ocorre um incidente. Uma das primeiras rodas tratou de um menino que havia derrubado a estante de livros. Depois de pensar bastante, acolheram a proposta de um dos meninos de que “ele deveria ser amarrado à árvore, lá fora”. Boa idéia, acharam os outros. O educador perguntou que árvore seria, com que corda. Todos se entusiasmaram. Foi quando ele perguntou quem avisaria a mãe dele de que ele passaria a noite toda amarrado que decidiram que “era melhor ele ficar suspenso de usar a biblioteca por uma semana”. Se arrumasse os livros. Coisa que ele não topou fazer. Viraram duas semanas. Esse mesmo menino prosseguiu em sua carreira de assédio moral pela escola e acabou suspenso na roda. A condição para que voltasse à escola é que pedisse desculpas a cada um dos garotos, na roda. Ele se recusou, e eles ligavam todo dia para a casa dele, perguntando se tinha mudado de idéia. Certo dia mudou, veio e pediu desculpas, está lá até hoje. Um santo? Não. Mas outro menino.

O pequeno Semler também já teve suas negociações com a roda. Sofia me mandou um e-mail intitulado “seu filho aprontando na escola” quando, recentemente, ele e duas meninas quebraram a cesta de lixo do andar de cima. Toca uma roda, onde decidiram mandar carta aos pais contando o ocorrido e pedindo dinheiro para comprar uma nova. Seriam R$ 3 de cada e o educador os levaria até a loja para comprar uma nova com os R$ 9. Concordaram, e o pequeno Semler foi buscar R$ 3 em sua pequena coleção de moedas, apenas para descobrir que sua fortuna chegaria ao fim. A mãe o tranqüilizou quanto a futuras acumulações de capital, e o pequetito deve ter (de acordo com o pai) pensado em Marx e Engels e concordado.

A questão da cidadania, portanto, tem muitos matizes. Outra delas é a que lida com diversidade. A Lumiar divide as matrículas em cinco classes, mais ou menos equivalentes às classes de A a E do IBGE. Assim, há filhos de milionários que pagam R$ 1.200 por mês e crianças que moram em invasões, que pagam R$ 3 por mês. Pagavam R$ 10, mas era a única categoria que gerava inadimplência (comparado com a média de 20% nas escolas tradicionais) – o jeito foi baixar de R$ 10 para R$ 3.

Os pais (ricos), receosos e oriundos de condicionamentos nefastos, perguntam se o filho deles não corre o risco de ser seqüestrado pelo tio do coleguinha na favela, enquanto outros (os sem-teto) perguntam se a filha não vai se acostumar com uma vida que nunca terá quando descobrir o luxo da mansão de um amiguinho – como se ela não assistisse à novela das oito.

Sem Madrugadas, mas com Longas Férias

A escola teve sucesso – é muito raro alguém tirar o filho de lá e um dos problemas mais constantes é a dificuldade, ao cabo de sete horas de aulas, de tirar a criança da escola. Na questão de horários, também, criamos as necessárias flexibilidades. Todo pai sabe que tirar a filha da cama as 6,45 horas é uma tortura. Que incentivá-la a ir para a escola de bom grado é raridade. Mas sabem também que, se a deixarem dormir quanto quiser, não passará muito das 8,30 horas. Assim, ela poderia ir, relativamente feliz, à escola, lá pelas nove e muito. Por que, então, começar tudo às 8 horas? De onde vem isso? Um pouco do exército, um pouco da comodidade para turnos de professores, e nada, nadica, do interesse em crianças. Criar uma escola centrada nos alunos é conversa fiada – ninguém o faz.

Nos primeiros dias, quando liberamos o horário para os pais – que apenas contratam um certo número de horas por dia -, os educadores ficavam aflitos com o acúmulo de carros que ocorreria as 7,45 horas. Afinal, os pais têm de ir trabalhar, têm de deixar as crianças antes, não? Ledo engano. Temos uma meia dúzia de crianças que chega antes das 9 horas e quase todas chegam em tempo para o primeiro projeto de mestre que se comprometeram a assistir, às 10 horas. Pronto. Sem choro. Chegam e saem saltitantes do carro. Para que criar torturas baseadas em crendices antiquadas – de que os pais têm de estar no trabalho a tal hora, que criança gosta de rotina, precisa de limites, acordar cedo faz bem para a saúde, como também canja de galinha, e mãe é mãe?

Vale para as férias. Temos pequenos períodos em que a escola fecha. De resto, os pais programam as suas férias para que a família não tenha de sofrer com a sandice de julho e janeiro inteiros com um terço da cidade na sua praia. Os pais levam “matéria” de estudo nos outros períodos e a criança reserva uma ou duas horas, no começo e final do dia, para isso. E, na escola, mantemos registro para que o educador possa atualizar a criança na volta.

Resultado? De 12 crianças no primeiro ano fomos para 140 no terceiro (65 em São Paulo, e mais 75 na Serra da Mantiqueira, segunda unidade, esta em parceria com a prefeitura local) e hoje temos uma lista de espera de nove escolas, públicas e privadas, que gostariam de adotar o selo Lumiar. Isso inclui escolas de 1.200 alunos. Mas não temos gente treinada – apesar de fila de espera também para as 100 vagas do curso de formação da Lumiar e dos 440 formados pelo curso que não viveram a escola em si.

Também não pretendemos crescer com escolas próprias e virar um negócio, muito menos uma franquia – queremos, sim, contaminar positivamente a rede pública -, e para isso constituímos o Instituto Lumiar, que investe cerca de R$ 1 milhão por ano (pagos pela Fundação Semco) em tecnologia e formatos de registro do mosaico que possam ser usados por professores da rede escolar país afora.

O (Maluco) Professor Semler

Aqui faço um adendo para uma experiência anterior de ensino que vivi quase na mesma época, em situação completamente diversa, mas para qual busquei trazer as mesmas bases.

Em 2005, fui convidado para ser professor no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Na primeira aula, 80 alunos de MBA me ouviram dizer:

– Vou dizer isso uma vez só, vai soar como ameaça e é mesmo – eu disse, na minha voz mais soturna.

– Se vocês não chegarem na hora, e se não entregarem a dissertação obrigatória, eu os aviso – pausei, para dar maior ênfase – não vai acontecer absolutamente nada. Passarão do mesmo jeito.

Para falar a verdade, meu conceito, nem era tão radical assim. Partia do pressuposto de que eu não iria sair do Brasil para dar aula para uma turma de previlegiados, numa universidade que está no cume das montanhas do ramo, com os alunos pagando US$ 50.000 por ano, para tratá-los como adolescentes.

Eu só queria na aula a meninada (de 26 a 32 anos) que quisesse mesmo vir. Como minha aula era a primeira da manhã, eu esperava que muitos se virassem para o lado e voltassem a dormir quando o despertador os avisasse que o professor Semler estava esperando.

Os alunos do MIT, como em outras universidades do gênero, escolhem o professor por um sistema de leilão na web – o professor oferece o curso, os alunos têm de formatar um número de créditos fixo e escolhem os cursos. Esse leilão existe porque não há lugar para todos os 120 alunos em cada curso.

Eu imaginava que era pouco conhecido pelos garotos dessa idade, mas o leilão esgotou-se numa tarde (fica duas semanas no ar), e ainda havia 20 alunos em lista de espera para o curso.

Comecei a brasilidade do curso recebendo, na segunda aula, uma multa do Departamento de Bombeiros da Cidade de Cambridge, Massachusetts, por excesso de alunos na classe. Nada mais justo, pois havia gente sentada nas escadarias e até no chão.

Passei a colecionar desafetos entre o corpo docente e a administração, bem à minha moda. Meus colegas de departamento achavam graça e me incentivavam, enquanto outros professores achavam aquilo absurdo. Não só eu não seguia o regulamento da universidade, mas ainda atraía os meninos com – ao ver deles – facilidades. “Claro que o cara vai ser procurado” – diziam – “não exige nada, deixa chegarem atrasados, libera do trabalho duro, quem não vai querer uma moleza dessas?”.

Bom teste foi quando chegou a hora da dissertação e eu pedi que desconsiderassem o formato usual da MIT, de documentos com espaçamento correto e número de páginas pré-determinadas. Além de dizer que não faria diferença se entregassem ou não – passariam do mesmo jeito – eu também sugeri que pensassem em formatos mais criativos para dizer o que aprenderam no curso.

Todos, menos um, entregaram a dissertação. Li com carinho e devolvi a cada um com comentários. Duas pessoas, inclusive uma curiosa indiana, entregaram longos poemas sobre o curso. Um entregou um CD-ROM, outro mandou um videoteipe, uma enviou uma pequena partitura sobre o curso e muitos entregaram documentos de 20 ou mais páginas.

Na última aula, como na primeira e em muitas outras, li para eles como se fossem crianças a serem embaladas para o sono, parábolas de Kafka, textos de Garcia Márquez, trechos de Jung, relatos curtos de Marco Polo, textos de Jean-Jacques? Servan-Schreiber? e de historiadores de guerra. No fim, sempre um silêncio comprido, meditativo. Ler autores de business, afinal, acrescentaria muito pouco ao curso deles. A essência de uma vida produtiva não estava em aprender a ganhar dinheiro e tocar organizações e sim em achar equilíbrio, evitar as grandes crises da meia-idade ou da aposentadoria e medir sabedoria versus eficiência.

Não deixei de dar meu blá típico, trazendo de volta à universidade, depois de quase duas décadas, o professor Henry Mintzberg, um dos maiores gurus de business, para, diante de um grande auditório lotado, fazermos um debate a dois sobre a inutilidade de se fazer um curso de MBA. A quantidade de professores do MIT e de Harvard na platéia alertava para o fato de que o dedo na ferida sempre interessa. Nosso intuito, além de provocar, era o de sugerir mudanças nos programas. Dificilmente seremos ouvidos, claro, especialmente se o Corpo de Bombeiros de Cambridge for consultado.

Aulas de Mundo

Meu maior orgulho como professor, contudo, reside longe de Cambridge. Mais exatamente, numa estrada municipal num bairro distante na Serra da Mantiqueira, onde dou, às sextas-feiras, aulas para garotos na escolinha rural. Eles têm entre cinco e 11 anos, e aparecem se quiserem. Afinal, o sistema MIT foi baseado neles mesmos.

A aula chama-se Mundo. Por meio dela, tento municiar a meninada com chaves para abrirem portas do conhecimento. A gente senta em roda e abre o jornal do dia. Escolhemos uma notícia que os interesse, e procuramos na Internet, ou por meio de conversa ou livros, insights sobre o assunto.

Quando houve o roubo por túnel da caixa-forte do Banco Central em Fortaleza, por exemplo, passamos a aula imaginando com saberíamos chegar de um prédio ao outro na escuridão do túnel. E como evitaríamos que a terra acima de nossas cabeças nos soterrasse.

Outras vezes meditamos juntos sobre o que faria um menino muçulmano de 18 anos se explodir. Entramos na net e vamos a imagens de Meca e explico como os muçulmanos do deserto sabem os cinco horários por dia para rezarem em direção a Meca – o primeiro e último quando não se consegue distingüir entre um pêlo de carneiro branco e um preto. No som, ouvimos um muezzin chamando os fiéis.

Outras vezes entramos a fundo na possibilidade da existência de um décimo planeta no sistema solar e pensamos quanto tempo demora para chegar de foguete na Lua, em Plutão ou no final da nossa galáxia, antes de entrar numa das outras bilhões delas. Alguns adultos e professores também aparecem nas aulas e é raríssimo que um adulto – mesmo muito culto – saiba dizer quanto tempo um foguete demoraria, de Plutão até o começo da próxima galáxia – inacreditáveis 11.000 anos!

Claro que aprendo mais do que ensino, mas, juntos, ficamos a fitar o mundo, a partir daquela pequena janela rural. Quero que eles saiam de lá capazes de investigar a vida por eles mesmos, totalmente aparelhados. Professor do MIT ou de Harvard, oras bolas! Quero ser lembrado – se o cemitério de Mount Auburn, em Cambridge, não me fizer mudar de idéia – como professor municipal de bairro rural, isso sim.

Lá, aprendi que mestre que não sabe segurar os alunos, perde-os. E isso quase nenhum professor conhece – ou sabe lidar com. Na Lumiar, as crianças se comprometem com um curso, mas podem revê-lo se acharem que está chato. O mestre, com ajuda do Instituto, tem de conseguir “passar a matéria” sem que as crianças queiram sair para jogar bola. Nas nossas escolas, há jogos, esportes, DVD e videogames disponíveis o dia inteiro. O professor precisa conseguir competir com isso. Os nossos, depois de algum tempo, aprendem a fazê-lo – transformando disciplinas áridas em magia do conhecimento. Seja fazendo maquetes com arquitetos – para aprenderem geometria, cultura, história e física – seja no projeto de meses de estudo do tatu-bola, ou mesmo no “curso” de bicicleta, onde aprendem inglês, como desenhar um círculo perfeito (3.1416 x r², anote) e o que acontece na física quando se bate a bicicleta.

Escola perfeita, modelo lindo? Claro que não. Além de vivermos às turras, equipe, Fundação e Instituto, para achar o equilíbrio entre viabilidade econômica (as escolas estão hoje perto de se sustentarem) e pureza intelectual, dogmas, corporativismos e excesso de inovação de palpiteiros curiosos (eu), temos todos os problemas típicos da natureza humana e do status quo adquirido.

Mas sempre nos irmanamos ao fim de cada ano, quando achamos que estamos ajudando a alumiar os cantos sombrios da escola do século XXI.

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Transcrito em Salto, 20 de Setembro de 2007